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Esta fotografia de um banco de jardim foi tirada, ontem, pela mãe de um de nós, à frente da sua casa.

Estamos em estado de emergência e o Estado pode aprovar restrições e intrusões fortíssimas aos direitos fundamentais das pessoas.  Mas é fundamental lembrar que existem limites jurídicos: essas restrições têm de ser proporcionais e durar o menor tempo possível. Isso significa que o Estado, seja o poder executivo ou o poder legislativo, têm o dever de proteger não só o direito à vida, mas também os restantes direitos fundamentais que estão a ser largamente comprimidos e, em alguns casos, suprimidos pelas medidas adotadas no combate à pandemia. Isso implica que, à luz da Constituição e do princípio do Estado de direito, o Governo, o Presidente da República e a Administração em geral têm o dever de justificar detalhadamente, e à luz da evidência empírica e do conhecimento científico em constante atualização, as opções concretas que se traduzem em impedimentos brutais à vida económica, social e individual.

No caso em apreço, qual é a justificação para impedir as pessoas de se sentarem num banco de jardim?

Se é reconhecido às pessoas, mesmo em estado de emergência, o direito a sair de casa para praticar exercício físico ou fazer pequenos passeios, porque lhes é vedado sentarem-se num banco de jardim?

Qual é a base científica sobre a transmissão do vírus que justifica poderem reunir-se as mais altas figuras do Estado no dia 25 de abril na Assembleia da República sem terem que usar máscara, mas não poderem os cidadãos comuns sentar-se num banco de jardim ao ar livre?

Qual é a base científica sobre a transmissão do vírus para encerrar os jardins públicos e as praias, privando, em muitos casos, adultos e crianças do único contacto possível com a natureza?

É que o poder público, em Estado de direito constitucional, para ser exercido, precisa de ser constantemente justificado. Justificar, dar razões, convencer, argumentar, são operações que envolvem procedimentos: clarificação de premissas, análise destas à luz dos factos, consideração de potenciais caminhos alternativos, e um processo decisório para escolher a melhor solução possível – aquela que procede à melhor conciliação de todos os valores constitucionais em presença, dando a máxima satisfação a todos, à custa do menor sacrifício possível.

Uma pandemia não é um argumento autoexplicativo nem autoevidente para fechar um país e condená-lo à pobreza. Não basta acenar a bandeira do vírus para dispensar os poderes públicos de justificarem cada uma das restrições que impõem.  Na verdade, quanto maior o pânico coletivo, maior a responsabilidade que se impõe aos poderes públicos na condução e justificação das suas decisões.

Sejamos adultos: os portugueses não precisam de palmadinhas nas costas. Os portugueses precisam de ter comida na mesa, crianças na escola, empregos sustentáveis e liberdade para poderem desenvolver o seu próprio projeto de felicidade. O seu, não o que é desenhado nos gabinetes ministeriais, e comunicado em discursos prenhes de retórica e infantilização cívica, mas demasiadamente parcos em justificações.

Este debate tem de mobilizar todos e cada um de nós. Devemos, civicamente, exigir que os poderes públicos estejam à altura das responsabilidades e seriedade deste momento. Não podemos assistir, de modo passivo, à consolidação da erosão de liberdades individuais em moldes inimagináveis em democracia aberta e plural.

Neste sentido, ocorrem-nos algumas questões que gostaríamos de ver respondidas:

  • Como são ponderados os benefícios do confinamento para o controlo da epidemia com os prejuízos na ocorrência e tratamento de outras doenças, problemas de saúde mental, violência doméstica e outros que são causados pelo confinamento? Como são ponderados os benefícios do confinamento para o controlo da epidemia com os custos para a liberdade, educação, cultura e atividade económica?
  • Que condições está o Governo a criar para que a proteção da vida e do sistema nacional de saúde não seja alcançada através da quase supressão das liberdades em que assenta a nossa comunidade política?
  • Depois de mais de um mês de estado de emergência, onde está a evidência de que esse tempo foi aproveitado para criar condições alternativas ao confinamento, não só para dotar as pessoas da liberdade de sair de casa, de ir à escola, de trabalhar, mas também para desenvolver soluções políticas seguras que visam a progressiva e rápida devolução da liberdade abruptamente retirada?
  • Que esforços tem adotado o Governo para promover a produção e análise de conhecimento científico atualizado e abrangente que promova o conhecimento sobre os números reais de infetados e a efetiva taxa de letalidade da epidemia? Que diligências promoveu o Governo para dotar a comunidade científica do acesso ao melhor conhecimento e no mais curto espaço de tempo sobre a evolução da situação epidemiológica?
  • Com que base científica são decididos temas como a obrigatoriedade ou não de utilização de máscaras para a redução do contágio em transportes públicos e recintos fechados de acesso público?
  • Se a incerteza impera, porque é que já se tomou a decisão de impedir que as crianças do 1º ao 9º ano regressem à escola antes de setembro, infligindo a muitas delas uma disrupção no processo de aprendizagem que produzirá efeitos irreversíveis? E porque é que as creches, onde o distanciamento social é impossível de manter, serão dos primeiros estabelecimentos a reabrir? Como são tomadas estas decisões? Qual a intervenção de pais e professores nestas decisões?  Os critérios de decisão são apenas de controlo da pandemia?
  • Porque é que, ao contrário de outros países, o Governo não se faz aconselhar em permanência por sociólogos, filósofos, juristas, eticistas e outros peritos das humanidades e ciências sociais? Porque é que o discurso político se encontra confinado nas fronteiras do saber médico e epidemiológico, ocasionalmente temperado por audições de economistas?
  • Se a democracia não está suspensa, como as nossas três primeiras figuras do Estado não se têm cansado de repetir, porque é que o plano de desconfinamento e de levantamento das restrições de direitos fundamentais mais expressivas desde o Estado Novo não está a ser trabalhado do modo mais democrático, transparente e participativo possível, envolvendo o parlamento, a oposição democrática, as universidades, as associações patronais, toda a comunidade científica e académica e as forças vivas da sociedade? Porque é que não somos todos envolvidos no projeto nacional de devolver a liberdade a Portugal? Porque é que não se promove um processo aberto e inclusivo, aproveitando os recursos tecnológicos, para recolher contributos e alcançar soluções cooperativas e consensualizadas que devolvam a liberdade às pessoas?

Vivemos tempos de profunda incerteza. Não sabemos o verdadeiro grau de letalidade do vírus, não sabemos o real número de infetados, não sabemos se existe ou é possível existir imunidade de grupo. Mas há muitas coisas que já sabemos: sabemos que, desde 13 de março, as crianças e jovens deixaram de ir à escola; que o número de trabalhadores desempregados e em layoff explodiu; que o PIB cairá este ano mais do que em qualquer período da história recente do país; que o défice público e, consequentemente, a dívida pública provocarão um enorme aumento de impostos e agravarão ainda mais os encargos que deixamos às gerações futuras e aos mais jovens, precisamente aqueles que, sendo os menos afetados pelo vírus, suportam o peso direto do confinamento e o fardo da possível destruição de um futuro mais próspero.

Vamos assistir a tudo isto passivamente, enquanto os gabinetes ministeriais decidem o nosso futuro e o futuro dos nossos filhos? Ou vamos exigir participar das decisões que determinarão o futuro de Portugal para as próximas décadas? Compete-nos garantir que quem tem a nossa liberdade nas mãos é responsabilizado pela justificação e explicação de todas as opções que envolvem as nossas vidas e pela definição do país que seremos daqui em diante.

No dia 13 de abril, foi enviada uma carta ao Presidente da República, Presidente da Assembleia da República e Primeiro-Ministro com um conjunto de preocupações e sugestões para a reabertura da sociedade em segurança.  Esta carta foi assinada por 377 pessoas com responsabilidades importantes nos mais diversos setores de atividade.  É preocupante que esta carta não tenha tido resposta nem tenha suscitado a vontade de envolver este grupo, de gente interessada e com espírito colaborativo, na procura de soluções para esta crise.

Cabe-nos a todos, em democracia, sem sermos infantilizados, definir se nos podemos sentar nos bancos de jardim.