Um dos principais fatores de análise da situação epidemiológica de qualquer país passa pelos limites definidos. Nem tudo tem de ser matemática, como acontece em modelos como aquele que Anders Anders, chefe da Agência Pública de Saúde da Suécia, implementou no país escandinavo (com piores resultados do que os vizinhos Noruega e Dinamarca, acrescente-se), mas existem referências importantes para acompanhar a evolução da pandemia. Aqui, como nos números de um cálculo de Excel, uma variação tende a alterar tudo o resto. E foi isso que aconteceu nos EUA, em relação à data da primeira vítima de Covid-19, três semanas antes do que se pensava.

Cicatrizes nos pulmões, risco de enfarte e até problemas cerebrais. As sequelas que a Covid-19 deixa em quem recupera

O primeiro caso no país, estudado até à exaustão, está completamente identificado: um homem de 35 anos que tinha regressado a 15 de janeiro de Wuhan, onde visitou a família, deu entrada nas urgências de uma clínica em Snohomish County, em Washington, após quatro dias de tosse e febre desde que voltou aos EUA. E o New England Journal of Medicine tem todos os pormenores, incluindo o pedido para que colocasse uma máscara mal chegou ao local até aos 20 minutos de espera até entrar na sala de exames e explicar que se tinha deslocado ali depois de ver também os alertas do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC). 11 dias depois de ter sido internado, a sua situação, que chegou a ser problemática, apresentava um quadro bem mais desanuviado.

No dia 26 de fevereiro, quase um mês depois de ter sido formada a task force que ainda hoje acompanha Donald Trump na Casa Branca no combate à pandemia e de terem sido decretadas as primeiras restrições de entrada, o país registou o primeiro caso de uma pessoa infetada que não tinha realizado nenhuma viagem ao estrangeiro nem tinha estado em contacto com qualquer pessoa com o vírus. O país registava menos de 100 casos confirmados de Covid-19, quase todos concentrados em poucos estados e de pessoas que tinham viajado.

Três dias depois, um homem na casa dos 50 foi tido como a primeira vítima por Covid-19 no país, em Seattle, no estado de Washington. E é aqui que os valores começam a variar: numa primeira instância, surgiram dois casos também em Washington mas no dia 26; esta semana, depois da alteração de alguns dos pressupostos nacionais e na própria ligação com o CDC, essa margem decresceu 23 dias, com o caso de uma mulher em Santa Clara, na Califórnia. “Esta é provavelmente a ponta de um icebergue de dimensão desconhecida. A cada caso tínhamos de perguntar sempre ao CDC se a pessoa cumpria os requisitos e se podíamos enviar testes”, então Sara Cody, diretora médica de Santa Clara, realçando que tinha sido por propagação local e não por viagens.

Os padrões da epidemia nos EUA terão de ser ajustados para levar em conta essa data inicial. Os modelos terão de rever o número de casos atuais para níveis mais elevados”, comentou a esse propósito Jay Bhattacharya, uma professor de saúde pública na Universidade de Stanford.

Este domingo, o San Francisco Chronicle conseguiu obter, em exclusivo, a autópsia dessa primeira vítima por Covid-19 no país. Patricia Dowd, de 57 anos, tinha sintomas parecidos com uma gripe antes da sua morte mas o vírus foi detetado no coração, na traqueia, nos pulmões e nos intestinos, segundo a autópsia tornada pública.

Novo coronavírus já circulava nos EUA no início de fevereiro

“Há algo de anormal no facto de um coração perfeitamente normal se abrir. O coração rompeu, os corações normais não se rompem. Este coração rompeu-se ou abriu-se por causa de uma infeção do músculo cardíaco, uma infeção que foi causada pelo novo coronavírus”, comentou ao jornal Judy Melinek, patologista forense da Bay Arena que não esteve na autópsia mas leu todos os documentos da mesma, que acrescentou ainda que se tratava de uma mulher ligeiramente obesa mas saudável e sem qualquer antecedente médico. Andrew Connolly, patologista da Universidade da Califórnia, em San Francisco, acrescentou a possibilidade de ter havido uma inflamação do coração ou uma reação auto-imune pelo vírus, revelando ainda a existência de uma leve pneumonia.

O caso foi detetado depois de as autoridades nacionais terem confirmado evidências de infeção viral em vítimas que tinham dado inicialmente outras patologias, nomeadamente pneumonia. A médica legista de Santa Clara acreditou sempre que, apesar de não haver esse reconhecimento face à impossibilidade de confirmar a existência de Covid-19, tinha sido essa a causa da morte de Patricia Dowd (mais dois outros casos semelhantes, uns dias depois). A confirmação surgiu esta terça-feira pelo CDC, para os três óbitos, sendo que, como nenhuma das vítimas tinha viajado, todas resultaram já de transmissão na comunidade, que já existia muito mais cedo do que se pensava.