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Que uma família real ocupe grande parte das parangonas dos jornais, faz parte da sua substância: que uma família real reine, mesmo que só nos cabeçalhos de revistas mexeriqueiras, mais do que um espanto é quase uma inevitabilidade. No entanto, a monarquia parece atrair uma espécie de atenção que é muito invulgar.
Se o que interessasse fosse apenas a vida privada de reis e infantes, a motivação para comprar revistas ou ver documentários sobre príncipes e princesas não seria diferente do espírito que leva a criada a comentar os segredos do patrão. Ora, aquilo a que se assiste em relação às famílias reais – e à família real Inglesa acima de qualquer outra – não é esta espécie de consolo dos impotentes, a má-língua que dá ao pequeno uma nesga de poder sobre o mais forte.
Os bebés reais, ainda longe das manigâncias privadas dos príncipes mais travessos, suscitam tanta atenção como os casos amorosos proibidos; os casamentos excitam tanto as revistas como as festas menos canónicas; isto é, o interesse pelas famílias reais não se pode reduzir a este poder decadente do fraco sobre o forte: há, como sabe qualquer dono de uma figurinha de plástico de Isabel II, um sentimento diferente a presidir (palavra maldita neste contexto) ao fascínio.
A cobertura mediática dos episódios mais amorosos também poderia sugerir que esta admiração fosse ainda um resquício de uma vida miserável, psicanaliticamente explicado. Na sua vida monótona, as pessoas encontrariam consolo no mundo encantado de príncipes e princesas. Quanto maior a pompa e mais solene a fatiota de monarcas e sua respectiva corte, mais o povo os admiraria.
A História, no entanto, mostra que o caso não é assim tão simples. Se a política se mostrou impiedosa para com os reis que tentaram, de alguma maneira, dessacralizar o seu poder, também é verdade que a excessiva distância de alguns reis tem sido sobremaneira apontada como uma das causas da decadência da monarquia. De Tocqueville a Maurras, de Sardinha a Pimenta, não há doutrinador monárquico que tenha assistido à queda generalizada das monarquias que não radique parte do seu descrédito nas derivas absolutistas mais megalómanas.
Qualquer uma destas respostas, aliás, falha parte do seu objecto. Nem é apenas a prova de que “afinal são pessoas que se portam tão mal como nós”, nem a demonstração de que são “príncipes encantados” que cevam o interesse popular. Estes sentimentos um tanto básicos e rasteiros não condizem, também, com as camadas sociais com interesse pela monarquia. A série “The Crown” vem provar que é possível manter o interesse generalizado pela família real sem fazer dela a versão inglesa do courato e do Benfica e – se não quisermos falar dos aristocratas, pretensos privilegiados pela monarquia – até em camadas intelectuais mais sofisticadas é vulgar assistir à admissão de uma certa simpatia pelos regimes monárquicos.
[o trailer da terceira temporada de “The Crown”, que está disponível na Netflix este domingo, dia 17]
https://www.youtube.com/watch?v=vLXYfgpqb8A
É certo que a série “The Crown” podia apenas legitimar um sentimento primário numa classe um bocadinho mais sofisticada, ou que os intelectuais podiam exprimir apenas o mesmo sentimento básico numa linguagem mais erudita; pode “The Crown” ser uma versão de um voyeurismo respeitável e as simpatias monárquicas admitidas com displicência, uma versão de barba feita do Zé Povinho. No entanto, uma e outra hipótese parecem-nos redutoras.
Simpatia e Decadência, José Cid e Chateaubriand
De facto, há uma tradição intelectual, que começa talvez com Chateaubriand, de olhar para a Monarquia com “simpatia”. Isto é, não de ver a Monarquia propriamente como uma doutrina ou como um sistema político, mas de olhar para ela com o ponto de vista melancólico do derrotado. O intelectual sabe que a monarquia não vai voltar e tem nostalgia daquilo que já passou, põe-se do lado dos derrotados, ama a cultura que o formou e que já não volta. Isto é, o amor do intelectual (com Chateuabriand como grande exemplo) pela monarquia é o amor pela decadência, gosta da monarquia precisamente porque ela já não existe.
Ora, não nos parece que este seja o mesmo sentimento que toma o inglês baixo-pirista que enche a família de caraças do príncipe Harry; também não é, aparte o gosto pela estética pós-segunda guerra, isto que mais prende o espectador de “The Crown”.
Nenhum destes sentimentos é suficientemente forte para justificar o interesse que a Monarquia motiva e, mesmo que juntássemos todos, que misturássemos o interesse pelo diferente, inacessível e exótico com a prova do que é humano e portanto próximo em tudo isso, que acoplássemos o fascínio pela glória à ternura pela decadência, não teríamos uma boa resposta à inquietação que motiva este texto. Esta junção tanto poderia justificar o interesse pela monarquia, como o interesse pelos índios ou pela máfia italiana. No entanto, nenhum destes casos suscita o mesmo tipo de reacções. O amor pelos índios leva a que queiramos proteger as suas reservas, o amor pela máfia levará provavelmente à prisão; nenhum destes fascínios, porém, leva ao mesmo tipo de interesse.
Há aspectos menos gerais e mais afastados do lugar comum da crítica jornalística, que justifica tudo o que é bom com “mostra a verdadeira natureza humana” que podem justificar as simpatias pela monarquia. O facto de se ver uma criança a crescer em público, a aproximação das relações do Estado à intimidade familiar, tudo isso pode justificar uma certa simpatia.
O certo é que a monarquia adquire uma espécie de respeitabilidade generalizada que vem, não de uma noção de justiça ou de Bem, mas desta simpatia. É vê-los nas figuras, fora do activismo realista, que se confessam monárquicas. Poucas são aquelas que afirmam uma doutrina monárquica; se olharmos para José Cid, Virgílio Castelo, Pedro Mexia, para citar figuras públicas de contextos bastante diferentes, todos nos aparecem como vagamente monárquicos, com “simpatias” monárquicas e não propriamente como defensores acirrados dos regimes monárquicos.

A família real inglesa de férias em Balmoral, em 1975
Esta característica da simpatia é tão marcante, que parece ter muito mais importância no mundo das famílias reais do que propriamente as doutrinas. Excepção feita ao caso da família Imperial do Brasil, quase todos os chefes de casas reais depostas concentram a sua actividade representativa em causas consensuais, de solidariedade generalizada, dão entrevistas a revistas de sociedade e apostam muito mais na boa imagem do que na boa doutrina.
A doutrina, aliás, no mais das vezes reduz-se a elementos circunstanciais ou, lá está, a provas de que o rei é uma figura mais consensual e, por isso mesmo, mais simpática. Vemos frequente a monarquia ser apresentada como mais barata do que a presidência, que custeia não só o presidente, como os antigos presidentes a quem a anterior dignidade obriga a manter um certo nível de vida, vemos o rei a ser apresentado como alguém que está acima dos partidos e cujo poder não nasce da divisão do país. A doutrina monárquica contemporânea concentra-se sempre mais na imagem do rei e da família real do que propriamente na previsão daquilo que seria um tecido social monárquico, ou na justificação da unicidade da soberania; o rei é visto vagamente como um símbolo, precisamente pelo carácter omniabarcante da palavra. Símbolo de quê? Da pátria, quando tantas vezes ao longo da História (basta o exemplo da Vendeia) o povo se mostrou muito mais interessado no rei do que na nação? Do povo? Da tradição? De um destino?
De Maurras à América – a formação do consenso
No princípio do século XX, a reacção monárquica ainda teve uma força política e intelectual assinalável. Em França, o Inquérito Sobre a Monarquia que Maurras ia fazendo nas páginas do jornal Action Française punha em debate altas figuras do seu tempo. Ao inquérito respondem Paul Bourget, Barrès – nacionalista mas não monárquico – ou o Duque de Orleães.
Em Portugal, as revistas Integralistas, como a Nação Portuguesa, conseguem atrair colaborações de grandes eruditos, como Paulo Merêa ou Cabral de Moncada. Multiplicam-se os autores e as obras de doutrina monárquica – Almeida Braga, João Ameal, Hipólito Raposo, ou, em França, Léon Daudet, Pierre Boutang – e a doutrina é tudo menos vaga e consensual. Maurras aproveita o positivismo para defender o “empirismo organizador” e a ordem como grande força civilizadora; Sardinha relê a literatura portuguesa à luz da ideia de monarquia; os historiadores elegem, de um lado, Joana d’Arc como modelo simultâneo de santidade e fidelidade à pátria, à coroa, de outro Nun’Álvares; os estudos etnográficos são aproveitados como marca da perenidade da tradição, a psicanálise transformada num modelo contra-revolucionário de controlo dos impulsos, a sociologia e a economia de Le Play eleitas como modelos contra-revolucionários, e os doutrinadores monárquicos estão na linha da frente de todos os combates políticos e culturais, até dos mais rasteiros: é fácil encontrar artigos de Maurras sobre armamento ou de Daudet sobre figuras menores da literatura, para não falarmos do inesgotável campo do combate histórico, de que as erratas à História de Portugal, de João Ameal e Rodrigues Cavalheiro, são um exemplo cabal.
Ora, como é que, passados poucos anos de todo o combate politizado, a monarquia se foi tornando num corpo cada vez mais despolitizado e ideologicamente neutro?
A verdade é que, à margem dos seus doutrinadores e, por vezes, até à margem das próprias famílias reais, a ideia de monarquia foi fazendo um caminho próprio. Logo no século XIX, a verdade é que quase todas as revoluções liberais, que se dizem herdeiras da Revolução Francesa, abdicam de um dos seus princípios fundamentais em nome de uma certa ideia de consenso. Na tentativa de apaziguar o conflito, Condorcet foi o principal introdutor da ideia de consenso como princípio político. Mais do que um princípio, talvez haja vantagem em agregar vários princípios. Assim, um país poderia manter, como o sistema da Carta consagrou em Portugal, várias fontes de soberania e vários princípios pretensamente exclusivos a coabitar no mesmo governo. A monarquia constitucional, de certa forma, despolitiza a monarquia. Ao mostrar que ela pode coexistir com uma forma mais ou menos democrática, mantém apenas do sistema monárquico a família real e uns resquícios mais ou menos importantes, não em nome de um princípio monárquico, mas de um consenso que vale a pena manter para ter uma maior representatividade.

O marquês de Condorcet
Ora, o problema da moderação como princípio político é que a moderação é sempre relativa. Entre liberais e comunistas, a social-democracia pode parecer moderada; mas entre sociais-democratas e nazis, o meio termo está no fascismo. Seria fácil, assim, com o empurrar dos ventos da história para a esquerda, que a Monarquia ganhasse de novo a imagem radical que os doutrinadores da Action Française ou do Integralismo Lusitano lhe davam.
No entanto, houve outro regime, não-monárquico, que contribuiu bastante para que a monarquia mantivesse o seu estatuto de certa forma neutral. Um dos aspectos mais importantes da Revolução Americana está na mudança que os founding fathers operaram na ideia de democracia. Para qualquer pensador do século XVIII seria impensável a ideia de uma democracia com um chefe. Parte essencial da democracia estava na ideia de debate, de que as soluções sairiam da dialética, não do poder de uma maioria sobre uma minoria. A introdução, na constituição americana, da figura do presidente trouxe vantagens inegáveis para a despolarização da monarquia. Isto porque a figura do chefe de estado deixa de aparecer como incompatível com a democracia. No sentido etimológico, o governo dos Estados Unidos é monárquico, o que tira alguma pressão sobre os soberanos reais. Quando o fascismo italiano, Vichy ou o Estado Novo arregimentam grande parte dos ideólogos monárquicos, relativamente satisfeitos com uma solução de compromisso que restaure, embora sem a cabeça, parte da ideia de sociedade que projectavam, o que resta é esta ideia simpática e despolitizada da monarquia que dura até hoje.
Joseph de Maistre: o reino dos sacrificados
A ideia de esvaziar a monarquia de um valor próprio e dar-lhe apenas significado simbólico é parte desta noção de que o rei tem de ser, acima de tudo, simpático ou consensual. Em certo sentido, os reis deixaram de governar, de conduzir, para passarem a ser conduzidos. Nunca se vê uma palavra polémica de um monarca em funções; o rei é símbolo e, por isso mesmo, reflecte aquilo que é a sociedade. Mais do que qualquer outra, a família real inglesa personifica este propósito: as acções e as opiniões de cada membro surgem sempre como a concretização daquilo que se percebe como os bons sentimentos da opinião pública. Multiplicaram-se em acções humanitárias no tempo em que o terceiro mundo monopolizava a consciência social, desdobram-se em activismos ecológicos hoje que a Ecologia domina o mercado da superioridade moral.
Este entendimento da monarquia como uma fonte e um depósito perpétuo de simpatia tem um carácter muito curioso. Por um lado, é uma forma de derrota: a monarquia desistiu de ter razão, de se apresentar como uma teoria política válida, que pode estar certa; reconhece que o seu capital é de simpatia e de benevolência: enquanto não contrariar a opinião pública, enquanto continuar a ser a versão política de gatos felpudos em brincadeiras amorosas, pode aguentar a sua posição.

Joseph de Maistre
Ora, paradoxalmente, isto demonstra um certo entendimento de um aspecto fundamental da defesa doutrinária da monarquia. Quando a Revolução Francesa vê Joseph de Maistre surgir como o grande defensor da monarquia e o grande adversário da revolução, vê surgir pela sua pena uma ideia bastante subtil. De Maistre explica que o mundo tem uma ordem própria, a que poderíamos chamar providência. Tudo o que está inscrito no mundo tem, também, a sua ordem. Da mesma maneira que os animais se comportam de maneiras diferentes e têm comportamentos diferentes diante daquilo que os rodeia, também o entendimento Humano tem as suas próprias regras. Acontece que estas regras do entendimento têm uma pretensão de validade universal que deve ser controlada. Isto é, o grande erro do iluminismo consiste em julgar que a regra do entendimento é que deve julgar a realidade e não que o entendimento serve para perceber a realidade.
As regras da política não são as regras da lógica, em que de uma premissa se segue uma conclusão. As regras da política podem ser percebidas historicamente – da prepotência de João sem Terra surgiu a revolta dos barões, por exemplo – mas não podem constituir princípios universais – à prepotência de Augusto seguiu-se a prepotência maior de Tibério e depois de Calígula. Isto é, a política não se rege por princípios, rege-se por factos e, nesse sentido, a monarquia não precisa de se justificar diante da razão – a razão é que tem de a perceber como um facto. Esta ideia contemporânea de olhar para a monarquia como um sistema não doutrinário traz-lhe, assim, a vantagem de corresponder, na ideia de De Maistre, à essência do político. Não há, na monarquia, a artificialidade dos princípios, artificialidade essa que também não existe nas relações sociais. Gostamos de pessoas íntegras e de pessoas velhacas, e não há princípio nenhum de que possamos derivar as nossas relações e as respostas para os nossos problemas. Nesse sentido, a monarquia pode ser vista como mais autêntica e mais próxima de um modelo não-artificial de política.
De Maurras ao Marquês de Penalva, de Rivarol a Pequito Rebelo, mesmo naqueles, como Maurras e Pequito, que fazem da razão a pedra de toque do sistema monárquico, há esta preocupação de mostrar a naturalidade da monarquia. Não necessariamente uma naturalidade lógica – já que não é a lógica que legitima a política, mas os factos que legitimam a validade dos resultados lógicos – mas pelo menos uma naturalidade histórica. Ou seja, mesmo que não seja justa, a monarquia corresponde a uma tendência das sociedades; e a expressão mais clara dessa tendência é, obviamente, a simpatia. A monarquia não é um imperativo da razão, mas parece ser, em certas alturas, um imperativo social; daí que, antes de falar à razão, se manifeste, de forma confusa, pelo sentimento.
Joseph de Maistre, porém, tem outra meditação que nos ajuda a perceber a força atractiva da monarquia. Um dos seus temas de eleição, que pode parecer deslocado a quem o lê, é a posição social dos carrascos. Isto porque De Maistre tem uma ideia muito interessante acerca do castigo. Explica ele que, em sociedade, o castigo, mais ou menos brando, é necessário. A transgressão tem de ser evitada, a sociedade tem de ter mecanismos para se proteger a si própria. No entanto, mesmo o castigo ou a coerção mais legítima tem, em si, uma injustiça fundamental. O carrasco, explica ele, tem este papel odioso de, por mais legítimo que ele seja, infligir o castigo. Pesa sobre ele esta injustiça: mesmo que socialmente não seja um crime, ele é obrigado a exercer a violência. Em certa medida, ele liberta toda a sociedade desse papel e concentra em si a violência a que toda a sociedade está obrigada. O castigo é uma necessidade social; mas o acto é só de um: em certa medida, é ele o sacrificado. Ora, para De Maistre, é também nesta posição que se encontra o soberano. Quem gosta de decretar a prisão de alguém, ou a privação de bens ou de liberdades dos outros? A necessidade de impostos é de todos, mas o “roubo” é só daquele que o decreta. O soberano, como o carrasco, concentra em si a má-consciência da sociedade, faz para ela os actos horrendos por meio dos quais a justiça tem de passar.
Neste sentido, o soberano, como o soldado, como o carrasco, concentra em si a admiração que merece qualquer sacrificado. Seria um acto heroico matar o pior facínora da humanidade, um super-hitler? Seria certamente, para todos, menos para aquele que tem de carregar consigo o peso de um assassinato. A ideia de que toda a soberania, mesmo a mais justa, só se concretiza por meio de um crime tem, em si, qualquer coisa de sinistramente verdadeira sobre o Homem. E que o Homem tenha admiração por aqueles que o livram do sangue necessário para a justiça, que o deixam viver em paz, parece-nos não só legítimo, como obrigatório.