O fogo não está só no título. Decorre a montagem da exposição na segunda-feira à tarde quando Marcelo Brodsky conduz uma visita guiada a alguns trabalhos que já se encontram nas paredes. Enérgico e emotivo, esbraceja e pragueja ao explicar cada obra, num périplo de quase uma hora. Fala português com sotaque do Brasil, uma voz cheia de fogo a encher as salas do museu. Conta que é casado com uma brasileira há três décadas, que tem casa em Goiás, que durante muitos anos visitou São Paulo com frequência por razões de trabalho. E explica o que o trouxe agora a Lisboa.

“Isto são tudo fotos de arquivo que pesquisei durante quatro anos, a começar em 2014. Escolhi imagens, digo quem é o autor e em cima delas fiz uma intervenção com cor. Uma só pessoa não teria tido capacidade de estar em dezenas e dezenas de cidades em 1968 a fazer fotografias. Recorri a vários arquivos e fontes. Como tenho 30 anos de experiência a lidar com imagens, porque fundei e dirigi uma agência de fotografia, a Latin Stock, que já não existe, sei muito bem onde encontrar imagens em qualquer parte do mundo.”

O resultado da pesquisa chama-se 1968: O Fogo das Ideias, que abre ao público nesta quinta-feira no Museu Coleção Berardo, em Lisboa, depois de ter percorrido várias cidades e certames, como sejam a Art Basel de Miami, o Fórum Latino-Americano de Fotografia de São Paulo ou o Palácio das Belas-Artes (Bozar) de Bruxelas. Por sugestão da curadora independente Inês Valle, e com a ajuda desta, a versão que o Berardo agora exibe é adaptada à realidade portuguesa, com fotos da crise académica de Coimbra em 1969 e dos movimentos independentistas nas antigas colónias. Além disso, as obras de Marcelo Brodsky estão agora em diálogo com as do belga Marcel Broodthaers (1924-1976), um dos grandes nomes das artes visuais do século XX. É por aí que começa a visita.

Numa parede que dá acesso às salas da exposição surge uma tela de Broodthaers, “L’Art et le Mots”, e o famoso vídeo “La Pluie (Project Pour un Texte)”, cedências, para esta ocasião, do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (MACBA). O argentino explica com intensidade.

“A exposição de imagens de 1968 estava fechada, mas durante o processo de preparação da vinda a Lisboa surgiu a hipótese de abrir este diálogo. É um privilégio raro, mas real. Foi uma casualidade, mas não existe casualidade na arte. Tenho a ousadia de fazer esta conversa com um artista tão importante, mas, de facto, toda a obra de arte é sempre uma conversa com a história da arte, com os artistas anteriores.”

O Observador pergunta-lhe com que artistas ou estilos costuma dialogar. Brodsky recorda que em 2009 participou no livro Correspondencias Visuales, ao lado de fotógrafos como Martin Parr. “Dialogo com vários artistas, tanto faz que sejam ou não contemporâneos, que estejam mortos ou vivos”, diz.

“É a primeira vez que faço correspondência visual com um morto. A minha mulher, que está aqui, e faz muito xamanismo, ela, sim, fala muito com os mortos. Eu não, só através da arte. Converso com qualquer um. Nunca sei que caminho vai esse diálogo tomar, estou aberto ao jogo dos significados e das ideias. E além de mim e do outro artista há um terceiro neste exercício, o público, aquele que olha. Sem isso, a arte na presta para nada.”

Já dentro do espaço expositivo propriamente dito, enquanto técnicos e funcionários circulam de um lado para o outro, Marcelo Brodsky chega-se perto de cada obra e conta como as criou. Sobre cada fotografia antiga, todas a preto e branco e impressas em papel de algodão, rabiscou palavras e garriu pormenores a lápis de cor. Ainda há duas latas de Caran d’Ache ali por perto.

Porquê a cor? “Porque gosto, não tem de haver explicação para tudo”, responde. “É como Van Gogh: usar a cor e misturar, procurar resultados intuitivos. A cor chama a atenção para alguns detalhes e altera a perceção da foto original.”

“Hoje pensamos que o mundo vai ser pior”

Tão artista quanto ativista, Brodsky nasceu em 1954 em Buenos Aires e esteve exilado em Barcelona entre 1976 e 1986. Ali estudou economia e fotografia e publicou poesia. Ao regressar à Argentina, fundou uma agência de imagens e só na segunda metade dos anos 90 passou a dedicar-se à criação artística visual. O interesse por imagens de arquivo, especialmente estas, que representam as convulsões sociais, políticas e culturais de 1968 e dos anos seguintes, vem-lhe da admiração pelas ideias daquela época.

“Hoje só temos ideias de merda. Pelo menos, em 1968, as ideias eram boas”, comenta. “Refiro-me às ideias que predominam hoje. Estamos num momento de crescimento da extrema-direita, do reacionarismo, da falta de liberdade. É um momento complicado. Naquela época, pensávamos que o mundo iria ser melhor. Hoje não pensamos assim, pensamos que vai ser pior.”

Tinha 13 anos em 68 e  guarda memórias difusas. Ao contrário do que se poderia supor, não foi o Maio de 68 em Paris que o fez chegar a esta exposição. Foi o sequestro de 43 estudantes em Ayotzinapa, no México, em 2014. A explicação é longa.

“É um rapto muito conhecido. Uns autocarros levaram os estudantes e eles estão desaparecidos até hoje”, conta o artista. “Quando aquilo aconteceu, eu estava no meu estúdio em Buenos Aires e recebi a visita de um académico que estudou e investigou as imagens do Massacre de Tlatelolco, de 1968, quando o exército e a polícia do México mataram 250 estudantes na Plaza de Las Tres Culturas, a poucos dias antes dos Jogos Olímpicos. Limpos a tiro, num ápice. Esses factos nunca foram julgados em tribunal, o poder silenciou. Na Argentina, não foi assim. O nosso país é um desastre, mas, pelo menos, julgámos os militares da ditadura [1976-84], estão presos. É uma grande diferença. Tive um irmão desaparecido durante a ditadura e os autores estão presos. Esse académico deu-me uma fotografia do Massacre de Tlatelolco e eu escrevi por cima: ‘Se tivessem julgado Tlatelolco, Ayotzinapa não teria acontecido’. E foi assim que regressei a 1968 e comecei a investigar mais imagens. Este trabalho não começou com a ideia de falar de Paris, mas, sim, do México. Não imaginava que estava a dar início a uma série.”

De resto, o trabalho de Brodsky sobre imagens de arquivo remonta a 1996, quando criou o projeto artístico “Buena Memoria”, do qual então se destacou a fotografia intervencionada “Class Photo, 1967” – onde se veem colegas de escola que viriam a desaparecer ou a morrer no período da Guerra Suja da ditadura militar argentina. A foto faz hoje parte da coleção da Tate, museu de arte moderna do Reino Unido, e do Metropolitan Museum, de Nova Iorque.

Contar histórias

Agora, no Berardo, vemos imagens captadas em Washington, Toronto, Londres, Berlim, Bruxelas, Tóquio, Beirute, Luanda, Bissau, Dakar, Dhaka. Imagens de estudantes nas ruas, de movimentos pela independência, de reuniões de ativistas e contestatários, dos que queriam a imaginação no poder, autodeterminação política, direitos civis, amor livre. Os anos do idealismo. Numa sala da exposição surge uma instalação sonora com discursos de Che Guevara, Luther King e Cohn-Bendit, entre outros.

Brodsky tem uma filha de 15 anos e entende que “a única forma de contar a história às novas gerações é através de imagens”. “Como? Cada um que procure a sua linguagem. Este meu trabalho é sobre linguagem narrativa. Não é apenas um trabalho sobre 1968. Como contar a história, é este o tema que aqui está. Conto como? Com imagens. O que fazer a essas imagens? Intervenho, acrescento texto, investigo.”

Exausto de tanta explicação e intensidade, o artista ainda tem oportunidade de dizer que o critério para escolha das fotografias com que trabalha está no conteúdo visual e informativo de cada uma. “É a mesma coisa que fazia na agência de imagem: editar fotos e fazer escolhas. Conheço bem esta tarefa, foi o meu ‘métier’ durante 30 anos, antes de ser artista a tempo inteiro, quando não conseguia viver da arte. Agora também não consigo, mas estou mais perto.”