Há muita gente que sempre se recusou a ver a “Guerra dos Tronos”, quiçá o maior sucesso televisivo dos últimos anos, porque – e passo a citar – não veem cá coisas com dragões. Como se a presença de uma criatura mitológica tornasse toda a experiência menos relacionável, um manto diáfano de fantasia que, ao contrário do que dizia Eça, não se coaduna com a nudez da verdade. Por tanto temerem a falta de realismo, perderam ironicamente uma das mais realistas séries sobre o poder que a pequena caixa já pariu. Uma pena.
Essa decisão é questionável, mas deixo-a passar só com uma reprimenda. Mais grave: as pessoas que não andam a ver a mais certeira trágico-comédia dos últimos anos só porque é um desenho animado com um cavalo como figura central. Falo de “Bojack Horseman”, que chegou agora aos seus últimos episódios na Netflix, seis temporadas depois.
“Bojack Horseman” conta a história de um ator de uma popular — mas insípida — sitcom dos anos 90, entretanto mais distraído com os vícios bancados por uma vida de luxo do que propriamente com o amor à representação. A série acompanha-o a partir do ponto de viragem: o momento em que a sua agente contrata uma ghostwriter para escrever por ele a sua autobiografia, numa tentativa preguiçosa de o trazer de volta à ribalta nem que seja à boleia da nostalgia.
[o trailer final de “Bojack Horseman”:]
Esta saga de desgraças hollywoodescas poderia parecer mais repisada do que uvas num lagar da Ermelinda, mas ao fim de algumas rejeições o criador Raphael Bob-Waksberg lá se lembrou de um fator diferenciador: as personagens tanto podem ser animais antropomórficos como seres humanos convencionais, que convivem e têm relações entre si sem que a espécie seja uma questão. Para isso, Bob-Waksberg foi chamar a ilustradora e ex-colega de liceu Lisa Hanawalt. Assim, a série tem como personagens principais Bojack (um cavalo, o tal ator em desgraça), Princess Carolyn (uma gata, manager do protagonista e sua ex-namorada), Mr. Peanutbutter (um cão e o ator rival do protagonista), Todd Chavez (um humano desempregado que mora no sofá do protagonista desde que apareceu numa festa na sua mansão, há anos) e Diane Nguyen (a escritora relutante da biografia de Bojack).
Série de culto com um público fiel e queridinha da crítica (basta ver as listas de escolhas da especialidade lançadas no fim do ano passado), “Bojack Horseman” tem passado entre os pingos da chuva de uma popularidade mais mainstream. Talvez isso se deva, em parte, ao facto de a primeira temporada (de 2014) ter sido passada em busca do tom certo para aquela história, que foi sofrendo mutações e ajustes. Aquele primeiro lote de episódios vai de tal modo em crescendo de qualidade e de originalidade que o prestigiado site IndieWire mudou o modo como faz reviews de séries, passando a fazê-lo apenas para temporadas completas. O que começou como uma comédia algo tola sobre um personagem sem virtudes termina agora como um tratado sobre a depressão, a autodescoberta e o amor. Mas continua a ter graça, juro.
São estas as sete razões para, agora que chegou ao fim, valer a pena fazer a maratona devida. É que não vale continuar a ignorar uma das melhores séries da década:
Tem personagens complexas: que a opção pelo formato em desenho animado não vos engane. Estamos perante personagens tridimensionais, que são sempre muito mais do que parecem à primeira vista. Numa série sobre a batalha com os nossos fantasmas, a doença mental e a valente treta que é a idade adulta, não podia ser de outra maneira. Até Mr. Peanutbutter, um labrador irritantemente feliz, acaba por se revelar bastante mais intrincado do que aparenta.

Digam olá a Mr. Peanutbutter
Um cast de luxo: Will Arnett (Arrested Development, 30 Rock), Amy Sedaris (Strangers With Candy), Alison Brie (Community, Glow), Paul F. Tompkins (There Will Be Blood) ou Aaron Paul (Breaking Bad), além de algumas celebridades convidadas como Daniel Radcliff (Harry Potter) ou Lance Bass (ex-membro dos N’Sync). Arnett, que tem já um extenso currículo sobretudo na área da comédia, tem aqui o seu papel mais aplaudido, mas não é um processo fácil – Bojack é de tal modo deprimido que o ator já disse que ia mandar a sua conta de terapeuta para o criador da série.
Citações que são um pontapé no céu da boca: entre piadas, chegam aquelas frases que, se nos apanham com a neura, até dão vontade de tatuar no antebraço. Alguns exemplos: “I spend a lot of time with the real me and believe me, nobody’s gonna love that guy” (“passo muito tempo com o verdadeiro Eu e, acredita, ninguém vai amar esse gajo”); “when you look at someone through rose-colored glasses, all the red flags just look like flags” (quando olhas de maneira cor-de-rosa para alguém não vês os sinais vermelho”); “I don’t think I believe in deep down. I kinda think all you are is just the things that you do” (“eu não acho que acredite em ‘lá no fundo’. Acho que só és as coisas que fazes”). E antes que pensem que tudo isto é sobre o protagonista e a miúda que ele quer levar para a cama, deixem-me elucidar-vos: esta é uma série sobre várias formas de amor, da família à amizade, passando pelo amor próprio. Sim, está a soar a Gustavo Santos, mas confiem em mim.
Faz rir: No meio de toda esta seriedade, “Bojack Horseman” nunca deixou totalmente de ser a comédia que diz na embalagem. Além dos bons diálogos e de uma boa dose de non sense (há uma altura em que Princess Carolyn namora com dois miúdos às cavalitas um do outro que fingem ser um adulto com uma gabardine gigante e nunca ninguém se apercebe disso), tem também muitas piadas visuais que fazem uso máximo do facto de ser um desenho animado. Isto é de tal modo recorrente que num episódio até surge esta ressalva:

“Parem de fazer pausa e vejam só o episódio”
Faz chorar: já vos disse que é uma série sobre a depressão? Pronto, então estamos conversados.
É experimental e ousada: alguns episódios são mais focados em diálogos e situações de personagens, num modelo clássico. Mas há outros que brincam com o conceito de storytelling e são originais em termos estéticos. Em caso de dúvida, consultar aquele que é talvez o melhor episódio de todos. Chama-se “Fish Out Of Water” (“Peixe Fora De Água”), o quarto episódio da terceira temporada, e apenas três minutos dos 26 totais têm diálogos. Além disso, “Bojack Horseman” não evita temas polémicos, do movimento Me Too ao aborto ou às armas.
Vai sempre em crescendo: não há nada pior que séries que não sabem parar, engonhando mesmo quando a frescura de outrora já se foi há muitos episódios. Aqui, não só não sucede isso como cada temporada é mais aprimorada que a anterior. “Bojack Horseman” é uma série que se vai tornando mais madura ao longo dos anos até ao seu esmerado suspiro final. Podem então dirigir-se à Netflix mais próxima (é aquela que andam a roubar a um primo, não é?) à confiança.
Susana Romana é guionista e professora de escrita criativa