Era um confronto de ideias de jogo. Era um confronto de formas de estar. Era, sobretudo, um confronto de gerações. No final, a França ganhou ao Uruguai por 2-0 e qualificou-se para a meia-final do Campeonato do Mundo. Que é como quem diz, a nouvelle cuisine apimentada pela experiência vencedora do antigo capitão Didier Deschamps ganhou ao futebol do feijão com arroz de El Maestro, Óscar Tabárez. Acabou o sonho dos sul-americanos, abre-se todo um novo horizonte para os europeus. E tudo porque a alviceleste ficou com um futebol demasiado insonso sem um dos principais condimentos: Edison Cavani.

Havia ainda alguma esperança entre as hostes uruguaias na recuperação do avançado do PSG que eliminou Portugal nos oitavos de final, mas também eles, que muitas vezes parecem ser super heróis de borracha na forma como se entregam a cada bola num espírito charrúa que desperta interesse incluindo nos rivais (que o diga Antoine Griezmann), são humanos, de carne e osso. Não dava mesmo para Cavani jogar. Entrou Stuani, continuaram a ser onze, mas a falta de um mudou por completo a face de onze. E foi com essa benesse que a França, com onze a todo o gás mesmo trocando o castigado Matuidi por Tolisso (o que, com todo o respeito pelo médio da Juventus, fica quase ela por ela), criou condições para que um brilhasse: a equipa.

Bastaram alguns minutos para se perceber que tipo de jogo teríamos pela frente. Ou melhor, para confirmar o tipo de jogo que quase todos esperavam que se tivesse pela frente: uma França com mais posse e domínio territorial, a construir de forma mais apoiada explorando depois a profundidade de Mbappé e os movimentos entre linhas de Griezmann, contra um Uruguai em busca de uma perspetiva mais direta e vertical junto das referências ofensivas, que mais não fosse para aguentar até que Nández, Vecino e Betancur pudessem acelerar o passe na transição para dar outro apoio a Suárez e Stuani. Pelo meio, e sem oportunidades de perigo, ainda houve tempo para uns “cartões de visita” como o de Giménez no calcanhar de Giroud sem bola (2′).

Aos 15′, Mbappé, que já tinha conseguido duas arrancadas a ganhar metros e adversários como um Usain Bolt de bola colada no pé, teve a primeira chance de visar a baliza de Muslera, mas depois do amortecimento de Giroud o miúdo que já iguala recordes de Pelé teve tanta vontade de marcar que calculou mal o salto e cabeceou por cima. Os minutos passavam, os gauleses aumentavam a percentagem de posse, a alviceleste via-se cada vez mais obrigada a jogar naquilo que os sul-americanos descrevem como “feijão com arroz”, sem fintas ou floreados no apogeu do sentido mais pragmático que se pode ter na abordagem a cada lance. Ainda assim, e sobretudo de bola corrida, as áreas eram uma zona proibida a quem por lá andasse com pensamentos de visar a baliza.

Vecino, numa das raras segundas bolas ganhas à entrada da área francesa, ainda teve um remate para defesa fácil de Lloris (35′), mas percebia-se que era nos lances de estratégia que a diferença poderia surgir. E, mais uma vez, o Uruguai morreu pelo seu próprio veneno: aos 40′, no seguimento de um livre lateral marcado na direita por Griezmann, Varane saltou mais alto do que Stuani (mais um erro que se juntou ao que não conseguiu fazer na frente) e inaugurou o marcador; aos 45′, Cáceres ganhou também pelo ar à defesa francesa, Lloris teve uma defesa fabulosa e Godín, na recarga, a um metro da baliza, atirou para as nuvens. Em menos de cinco minutos, a diferença podia ter sido desfeita mas o intervalo chegou mesmo com o 1-0.

Tabárez não mexeu ao intervalo nos nomes, mas quis subir linhas. Tudo ficou na mesma. Até pior, porque a profundidade que conseguia ter em alguns momentos permaneceu no balneário. Por isso, arriscou uma dupla substituição, trocando Betancur por Cebola Rodríguez na segunda fase de construção atrás dos avançados e Stuani por Gomez para ter outras ideias na frente. Se podia ou não resultar, ficaremos na dúvida. E o principal culpado desse ponto de interrogação chama-se Muslera.

Griezmann, o francês com raízes portuguesas e alemãs que joga em Espanha mas gosta é do Uruguai (e do compadre Godín)

Quando nada o fazia prever, um remate que parecia inofensivo de Griezmann acabou por ganhar um efeito contrário à primeira trajetória que estava a ser desenhada e o guarda-redes do Galatasaray defendeu para dentro. Com tantas analogias à culinária, só faltava mesmo um frango para gelar a ementa preparada por El Maestro ao intervalo e acabar de vez com o encontro. O avançado, que tem no Uruguai uma segunda equipa, acabou por não celebrar mas a festa estava mais do que montada (61′).

O erro de Muslera após o remate de Griezmann, que originou o 2-0 e… o final do encontro aos 61′ (Alexander Hassenstein/Getty Images)

Depois do triunfo por 4-3 com a Argentina, a França eliminou mais um conjunto sul-americano e carimbou a passagem às meias-finais do Mundial, onde irá defrontar Brasil ou Bélgica. Com a mesma identidade de jogo mas com nuances táticas que deram outra consistência defensiva, nas bolas paradas e sobretudo nas transições. E essa é a grande vantagem desta nova vaga chefiada por Didier Deschamps que promete ter uma palavra a dizer nos próximos anos (assim o treinador consiga controlar os egos no balneário que tanto mal já fizeram): mediante o que tem à frente, consegue sempre servir um prato à medida. Ao contrário do Uruguai, que sem Cavani “perdeu” Suárez no centro das decisões e não fugiu ao futebol do feijão com arroz.