Antes da pandemia estrangular as viagens internacionais, a parede cor de rosa da loja do designer Paul Smith, em Los Angeles, era um destino turístico como nenhum outro, com hordas de influencers amadores ou profissionais a viajar ao seu encalço com um único propósito: tirar selfies contra um cenário rosa fúcsia — a hashtag #PinkWall tem mais de 185 mil publicações. A icónica parede serve de arranque para o novo documentário da HBO, “Fake Famous”, que explora o universo dos influncers, expondo alguns dos seus segredos mais obscuros, e coloca questões pertinentes: ter muitos seguidores no Instagram é sinónimo de fama? Se sim, só naquela rede social há 140 milhões de pessoas “famosas” (com mais de 100 mil seguidores) e a probabilidade de conhecermos pessoalmente uma ou outra é enorme, diz ao Observador o estreante realizador e jornalista veterano Nick Bilton.
O documentário que se estreou a 3 de fevereiro naquele serviço de streaming resulta de uma experiência social inédita: para provar que qualquer um pode ser “famoso” no Instagram, Bilton e a sua equipa escolheram três pessoas com poucos seguidores nas redes sociais e aparentemente dispostas a tudo para caírem nas boas graças de um universo onde o sucesso é mensurável pela quantidade de gostos e de comentários. Dominique Druckman, uma jovem aspirante a atriz natural de Miami, Chris Bailey, um designer de Tucson, e Wylie Heiner, assistente imobiliário vindo do estado norte-americano do Atlanta, foram os eleitos. O trio, à semelhança das quase 4 mil pessoas que participaram no casting organizado a propósito da longa-metragem, responderam afirmativamente à pergunta de um milhão de dólares: “Queres ser famoso?”.




▲ Dominique Druckman, Wylie Heiner e Chris Bailey, respetivamente, foram os três jovens escolhidos para participar nesta experiência social
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Noutros tempos, não tão longínquos quanto isso, a fama era motivada pelo talento. Atores, cantores, desportistas ou designers, por exemplo, cativavam a atenção de milhares pelo trabalhado exibido. Depois, vieram os reality shows cujo convite à deturpação da vida real tornou pessoas famosas apenas por serem conhecidas. Agora, alega-se no documentário, há um novo tipo de fama que se move por contas de Instagram populadas de seguidores, sejam eles reais ou falsos. E é sobretudo na falsidade deste processo que se centra o trabalho assinado por Bilton, ele que defende que “a fama já não é necessariamente real”.
Ao longo de uma hora e meia de filme, os três protagonistas participam num rol de atividades cujo único objetivo é criar páginas de Instagram apeladoras para a angariação máxima de seguidores. À ligeira transformação visual que cada um sofre, com looks mais estilizados a serem uma benesse do projeto, seguem-se múltiplas sessões fotográficas que pretendem forjar um estilo de vida dispendioso e bem distante do real. A certa altura, Dominique é fotografada a usar um fato de banho preto colado ao corpo à beira de uma piscina comum — na imagem posteriormente publicada, ela identifica o local como sendo o Four Seasons Hotel Los Angeles, em Beverly Hills. E os chocolates que segura numa das mãos — a outra está ocupada com uma flûte de champanhe — não são mais do que quadrados de manteiga pulverizados com cacau em pó.
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Como esta sessão há outras: Dominique é fotografada numa mansão alugada e ainda junto a uma árvore para passar a ideia de que está no Parque Nacional de Redwood, enquanto Chris participa em sessões num estúdio que pretende simular o interior de um avião e num armazém que a produção finge ser um ginásio exclusivo de Los Angeles. A ideia não é só construir um estilo de vida invejável, como aliciar as marcas a futuros patrocínios. Mas nada disso fica completo sem o exército de bots (programas informáticos que simulam interações reais) que Nick Bilton compra para as contas de Instagram de cada um. E é aqui que as coisas se complicam.

▲ O documentário "Fake Famous" está disponível na HBO desde o dia 3 de fevereiro
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“Queríamos levar a Dominque ao Coachella, ao Super Bowl dos influencers”
Se, por um lado, a jovem aspirante a atriz alinha no jogo de forma notável, com o respetivo Instagram a ganhar cada vez mais pujança, por outro, Wylie começa a sofrer na pele traços de ansiedade social assim que é alvo de bullying por seguidores que identificam os bots na sua página — tanto que se afasta do projeto e a conta fica temporariamente privada. Também Chris, numa tentativa de ser fiel a si próprio, apanha o realizador desprevenido — apaga os bots à medida que Nick os adquire e eventualmente desiste da experiência. “Honestamente, quando começámos o filme, eu não sabia como é que isto se ia desenrolar, se ia ou não funcionar. Tivemos muita sorte em ter três resultados, onde o Chris abandonou o projeto, o Wylie assustou-se devido ao bullying e a Dominique foi muito longe. Parámos de filmar quando ela tinha cerca de 250 mil seguidores, quando parei de comprar bots. Agora, ela tem cerca de 350 mil. As pessoas continuaram a segui-la e ela continuou a receber centenas de coisas grátis, colchões, máquinas de café, etc.”, explica o realizador numa entrevista via Zoom.
“Quando eles os dois começaram a afastar-se, enquanto realizador com este objetivo de tentar fazer três pessoas famosas, entrei em pânico. Eu e a minha produtora ficámos os dois a pensar no que íamos fazer. Quando tirámos um minuto para pensar e, depois de continuarmos a filmá-los, ficámos muito gratos. Acho que o filme resultou melhor por causa disso”, continua. Ao Observador, Nick assegura que a experiência funcionou porque as pessoas começaram a olhar de maneira diferente para Dominique com base no número de seguidores que esta alcançou, com as marcas a aproximarem-se de forma espontânea, sedentas de galantear a jovem com inúmeros serviços e produtos, num processo que se repetiu (e repete) constantemente. “A vida dela mudou”, garante. “Ela até conseguiu mais audições.”


▲ Chris acabou por desistir do projeto e Wylie foi vítima de bullyinf
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As maravilhas e o senão dos bots, a deturpação do conceito de fama, o mundo fingido através de uma câmara fotográfica e os influencers como veículos publicitários de certa forma uniformizados são algumas das ideias exploradas no documentário. Mas, para Nick Bilton, há uma evidência que suplanta todas as outras: “O que aprendi sobre esta cultura durante o filme, algo que não sabia antes de começarmos, é que o grande objetivo do influencer é fazer com que te sintas mal. É dizer: ‘A minha vida é maravilhosa, eu tenho estas férias e estes carros grátis. Não vou ser honesto sobre como o consegui ou se gosto disto, mas vou fazer com que sintas que precisas destas coisas porque isso permite-me viver esta vida’“.
Mas não foi apenas o rumo das histórias de dois dos protagonistas que fugiram ao controlo do realizador. A ideia de Bilton era finalizar o documentário com Dominique a atingir 1 milhão de seguidores e levá-la ao festival Coachella, “o Super Bowl dos influencers”, onde aí faria uma festa patrocinada por várias marcas — o cenário ridículo, diz, era uma forma de mostrar como ninguém está realmente preocupado com a falsidade do meio, tanto por parte dos influencers como das marcas que, por vezes, tapam os olhos aos bots, não vá a indústria multimilionária ser abalroada pelo fenómeno dos seguidores falsos — ao longo da entrevista, Nick questiona-se várias vezes sobre o real retorno de alguns investimentos. Nada daquilo que fora inicialmente projetado aconteceu: a pandemia que assolou o mundo também congelou os planos do realizador e obrigou-o a outro final. “Isso teria sido um final divertido, não há grandes dúvidas, mas penso que a justaposição do coronavírus com este mundo de influencers salientou o ponto do quão ridículo tudo isto é.”

▲ O jornalista veterano Nick Bilton é o realizador de "Fake Famous"
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Numa altura em que vários países ao redor do mundo fechavam os seus cidadãos em casa por um bem maior, muitos influencers continuavam a partilhar fotografias idílicas, alheias à realidade vivida por milhões de pessoas. Na opinião do realizador, chegou a altura destes criadores de conteúdos digitais estarem no centro das atenções mas não pelos melhores motivos: “Os influencers continuaram a partilhar fotografias em biquínis na praia, como se nada tivesse acontecido, bem como fotos deles a viajar quando não se podia viajar, quando havia um lockdown, quando literalmente não podíamos sair de casa. Penso que deviam ser criticados por isso”. Não obstante as críticas apontadas a este sector, Bilton assegura que, surpreendentemente, tem sido contactado por várias influencers a agradecer o conteúdo do documentário. Mas, do outro lado da barricada, “muitos dos influencers que compram gostos e comentários falsos estão aterrorizados”.
A pandemia parece, de certa forma, ter interrompido a premissa do documentário, que ficou aquém em determinados aspetos, dando pouco destaque ao facto de os influencers continuarem a publicar coisas supérfluas no meio de uma crise sanitária e até de alguns se terem aproveitado de movimentos sociais, como o “Black Lives Matter”, que dominou também o ano de 2020.
O grande objetivo do documentário que está disponível na HBO desde a última quarta-feira é deixar um aviso às futuras gerações, no sentido de educar as crianças desde muito cedo para os perigos da internet, mas também responsabilizar as empresas tecnológicas que permitem a realidade descrita. “Nos EUA, os estudos que foram feitos mostram que 87% dos miúdos querem ser um influencer famoso porque acreditam que é a forma mais rápida para serem felizes, bem sucedidos, ricos e famosos”, diz, não sem antes referir o lado mais negro da indústria. “Muitas vezes, as pessoas que são bem sucedidas [no Instagram] não são felizes. Estão presas a fazer estes posts e a viajar, por vezes, para sítios que não querem ir. Durante as filmagens vi como este mundo é perigoso.”
“Fake Famous” é realizado, escrito e produzido por Nick Bilton. Além dos três protagonistas, no documentário participam outros entrevistados, como a repórter de tecnologia do New York Times, Taylor Lorenz; Liz Eswein, da popular conta @newyorkcity; a repórter de tecnologia da Bloomberg, Sarah Frier, e ainda Justine Bateman, autora de “Fame: The Hijacking of Reality”.