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Leonardo da Vinci Painting the Mona Lisa by Cesare Maccari
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"Leonardo Da Vinci a pintar Mona Lisa", Cesare Maccari, 1865

Corbis via Getty Images

"Leonardo Da Vinci a pintar Mona Lisa", Cesare Maccari, 1865

Corbis via Getty Images

Leonardo da Vinci "era tão cientista quanto pintor". Como o maior artista do Renascimento entra na história da ciência

O novo livro da historiadora Francesca Fiorani revela como Leonardo se serviu da ciência para se tornar pintor. Descrevia a luz como num artigo científico. O mestre foi quem lhe ensinou a fazê-lo.

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Quando Leonardo da Vinci, um belo adolescente com treze ou catorze anos, se tornou aprendiz numa oficina em Florença, a cerca de 800 metros da catedral de Santa Maria del Fiore, Andrea del Verrocchio, o proprietário, tinha acabado de receber uma importante encomenda dos Médici, a mais influente família italiana: a estátua de um novo David.

O David que Andrea del Verrocchio viria a esculpir era mais detalhado que o de Donatello, feito entre 1430 e 1440. Estava coberto por uma túnica de couro que revelava a estrutura óssea e a compleição muscular do rei israelita; e as pernas e os braços eram anatomicamente perfeitos.

O olhar do rei israelita, a glória que dele transparecia depois de derrotar Golias, foram concretizados com uma subtil rotação da cabeça e uma leve torção dos músculos dos membros. Só quem apreciasse a obra em todos os seus ângulos poderia contemplar o verdadeiro estado de espírito que Andrea del Verrocchio quis representar naquele David.

David, Andrea del Verrocchio, ca. 1466-69

Andrea del Verrocchio/Wikimedia Commons

Diz-se que o escultor se inspirou em Leonardo para criar David, mas é um mito. Há, ainda assim, algo que une a estátua ao génio renascentista: poderá ter sido Da Vinci a lançar a semente que fez nascer a obra ao interessar-se por anatomia, pelo comportamento dos materiais, e lhe ensinou a instrumentalizar a ciência para manifestar emoções nas suas obras.

A semente do interesse pela ciência já terá nascido com Leonardo Da Vinci; e era tão antiga como a sua aptidão para as artes. Esta é, pelo menos, a teoria apresentada por Francesca Fiorani, que cruza o percurso artístico de Leonardo com a história da ciência no livro “The Sh0adow Drawing”.

Publicada em novembro de 2020, lançado pela editora norte-americana Farrar, Straus and Giroux, a obra desta historiadora italiana e investigadora da Universidade de Virginia (Estados Unidos) disserta sobre “como a ciência ensinou Leonardo a pintar”.

"The Shadow Drawing: How Science Taught Leonardo How to Paint", Francesca Fiorani, editora Farrar, Straus and Giroux

Farrar, Straus and Giroux

Em entrevista ao Observador, Francesca Fiorani vai ainda mais longe: Leonardo Da Vinci tornou-se um artista exímio porque era “tão cientista quanto pintor”. Não discorda que foi “o derradeiro homem do Renascimento”, mas considera simplista resumi-lo a um génio de duas faces: o artista de “A Última Ceia” e o cientista dos paraquedas.

Por isso, recuou cinco séculos e encontrou uma nova descrição para Leonardo da Vinci: “Ele nunca se tornou um cientista porque sempre foi um. Leonardo não foi um artista que depois se tornou cientista ou vice-versa. Era, e sempre foi, tudo isso ao mesmo tempo”.

Francesca Fiorani recuou cinco séculos e encontrou uma nova descrição para Leonardo da Vinci: "Ele nunca se tornou um cientista porque sempre foi um. Leonardo não foi um artista que depois se tornou cientista ou vice-versa. Era, e sempre foi, tudo isso ao mesmo tempo".

A fúria, o medo, a alegria: Leonardo pintava isso tudo com ótica

A prova está nos estudos de sombreamento do renascentista que resistiram à passagem do tempo. Leonardo mantinha na secretária uma vela, uma esfera e uma tela de papel muito espesso ou madeira. Quando o Sol se punha, Leonardo acendia a vela e observava como a luz da chama fluía até à superfície da bola.

Encantava-o ver como a região mais diretamente atingida pela luz da vela cedia ao brilho dela, mas que, apreciando a esfera em todos os ângulos, umas zonas eram completamente engolidas pela sombra e outras eram poupadas ao eclipse total e ficavam na penumbra. Ou seja, Leonardo Da Vinci não contemplava a luz como o comum dos mortais — como um único fluxo de radiação emanada ao longo do espaço. Quatrocentos anos antes da descoberta dos fotões, o pintor renascentista já desenhava a luz raio a raio, como um fluxo de partículas que incide e é refletido sobre os objetos.

A devoção de Leonardo pela ótica está bem documentada. Num dos ensaios onde exercitava o sombreamento, chegou a escrever notas sobre o comportamento da luz e das sombras, que observava pacientemente ao reposicionar a vela e a esfera na secretária, como se fossem verdadeiros resultados de um estudo científico.

Diagrams illustrating the theories of linear perspective and of light and shade, c1472-c1519 (1883). Artist: Leonardo da Vinci.

Três diagramas que ilustram as teorias da perspectiva linear e da luz e sombra, ca. 1472-c1519, Leonardo Da Vinci

Getty Images

“Cada sombra feita por um corpo opaco menor do que a fonte de luz, projeta sombras derivadas tingidas pela cor da sombra original”, diz um dos apontamentos: “Um corpo opaco criará duas sombras de escuridão igual. Assim como a coisa tocada por uma massa maior de raios luminosos torna-se mais brilhante, então ficará mais escuro o que é atingido por uma massa maior de raios de sombra”, sugere.

Mas nem o fascínio de Leonardo pela ótica era de ordem puramente científica, nem a dedicação à pintura era puramente artística, sugere Francesca Fiorani: ele queria saber mais de ciência para saber pintar melhor. Para Leonardo, saber pintar era mais do que saber desenhar e misturar cores: era uma questão de sensibilidade.

“A ótica ensinou-o a representar precisamente a alma humana, a desenvolver uma habilidade única para representar o que as pessoas pensavam e sentiam, as mudanças de humor”, concretiza a historiadora: “Estava especialmente interessado em emoções extremas, como o medo, o ódio, a felicidade. Refletia isso tudo nas expressões visuais do que desenhava”.

"A ótica ensinou-o a representar precisamente a alma humana, a desenvolver uma habilidade única para representar o que as pessoas pensavam e sentiam, as mudanças de humor", concretiza a historiadora: "Estava especialmente interessado em emoções extremas, como o medo, o ódio, a felicidade. Refletia isso tudo nas expressões visuais do que desenhava".

Leonardo Da Vinci não era a única personalidade renascentista que cruzava conhecimentos desta forma e colocava a ciência ao serviço das emoções e vice-versa. Essa era, na verdade, a filosofia daquela época, muito inspirada na literatura clássica, em que filósofos como Cícero já dissertavam sobre como apelar às emoções humanas.

Mas Leonardo tinha uma estratégia singular para concretizar tudo isto: o método científico. “O que era novo nele era a capacidade de fazer isto com uma base científica, através de uma compreensão profunda da ciência da luz e da sombra, como elas afetam a forma como percecionamos o mundo, especialmente o rosto humano”, explica.

'Cast of Drapery for the Legs of a Seated Figure', 1470-1484

Estudo da resposta da luz ao movimento de um tecido nas pernas de uma figura sentada, ca. 1470-1484, Leonardo Da Vinci

Getty Images

A casa de partida da ciência para Leonardo foi o globo dourado no topo de Florença

Ora, a oficina de Andrea del Verrocchio era o sítio perfeito para Leonardo Da Vinci desenvolver estas aptidões: também o seu mestre nutria um interesse profundo pela ótica, pelo estudo estudo da luz e da sombra. Um projeto em particular, entregue a Verrocchio enquanto Leonardo era um aprendiz, deve ter deflagrado esse interesse pela ótica no jovem renascentista: a palla, um enorme globo dourado que ainda hoje coroa a cúpula da catedral de Santa Maria del Fiore.

Estava-se em 1468 e era já o fim do verão quando a Operai dell’Opera del Duomo, a comissão responsável pela construção da catedral, lhe entregou o projeto da palla. Andrea del Verrocchio não foi a primeira escolha e só foi repescado do concurso público porque os artesãos escolhidos inicialmente falharam redondamente no plano de construir a esfera dourada num único molde.

Mas Andrea del Verrocchio, como veio a comprovar-se, era o artista ideal para um projeto daquela magnitude. Propôs-se a construir um globo oco para ser mais leve, suportado por uma estrutura interna que podia ser ancorada à cúpula. O exterior seria constituído por línguas metálicas marteladas em cima de uma rocha, depois soldadas umas às outras através de “espelhos de fogo”, lentes convexas que direcionavam a luz através de superfícies refletoras para um único ponto.

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Cúpula da Catedral de Santa Maria del Fiore, com a palla no topo

Kevin Britland/Education Images/Universal Images Group via Getty Images

Era um trabalho engenhoso que exigia a perícia do melhor fundidor de bronze em Florença, mas também o conhecimento mais íntimo “das ciências, particularmente da geometria”. Esse alguém era Andrea del Verrocchio, o mestre de Leonardo: sábio da geometria esférica, decidiu cortar o metal em triângulos curvados à martelada que encaixavam perfeitamente e fundi-los com o calor da luz solar.

Leonardo tinha 20 anos ou pouco menos quando tudo isto aconteceu. A história da palla de Santa Maria del Fiore, que ainda hoje ilustra a brilhante luz da Toscânia, só é conhecida ao detalhe porque, já com 60 anos, Da Vinci a recordou. Na altura, era já um artista famoso, vivia em Roma e fazia dinheiro a construir armas para as forças armadas do Papa.

Algumas dessas armas funcionavam sob o conceito teórico dos “espelhos de fogo”. Foi à margem de um desses projetos, num caderno repleto de cálculos, fórmulas matemáticas e observações sobre o funcionamento teórico de armas, que Leonardo recordou a história da palla num lembrete para ele mesmo: “Lembra-te das soldas que foram usadas para a palla de Santa Maria del Fiore. [Faz] de cobre martelado sobre pedra para os triângulos dessa palla“.

Foi à margem de um desses projetos, num caderno repleto de cálculos, fórmulas matemáticas e observações sobre o funcionamento teórico de armas, que Leonardo recordou a história da palla num lembrete para ele mesmo: "Lembra-te das soldas que foram usadas para a palla de Santa Maria del Fiore. [Faz] de cobre martelado sobre pedra para os triângulos dessa palla".

Para Francesca Fiorani, esta é “uma evidência indireta de que, embora não saibamos exatamente o que ele fez nessa operação, o que quer que tenha sido ficou-lhe na cabeça“. Terá sido da palla que Leonardo retirou os mais avançados conhecimentos sobre ótica que lhe vieram a ser tão úteis na carreira artística, teoriza a investigadora.

O estudo da luz e a dissecação de cadáveres

Leonardo Da Vinci não tardou a aplicar todos estes conceitos nas primeiras obras que desenvolveu sozinho. “A Anunciação”, um óleo sobre painel que exibe o arcanjo Gabriel a informar Maria de que tinha sido escolhida para dar à luz o filho de Deus, Jesus, terá sido o pioneiro, acredita a historiadora.

A obra terá sido encomendada a Andrea del Verrocchio, mas saído efetivamente das mãos do génio Leonardo. Os desenhos e modelos já pertenciam à oficina, mas isso não é suficiente para acabar com a dúvida, colocada por muitos especialistas, sobre se “A Anunciação” terá sido completamente pincelada por Leonardo ou se terá contado com o apoio do próprio Verrocchio ou de Domenico Ghirlandaio (o tutor de Michelangelo).

"A Anunciação", óleo sobre tela, atribuída a Leonardo da Vinci, 1472-1475, 98,4×217 cm

Leonardo da Vinci/Wikimedia Commons

“A forma como os elementos foram combinados, a figura da Madona, do anjo, do Palácio, a vista e, mais importante ainda, o modo como ele os pintou… Tudo isso demonstra imediatamente o senso de ótica que não corresponde a nenhum outro artista de Florença naquela época”, argumenta Francesca Fiorani. Será, portanto, segundo ela, a obra-prima de Leonardo, o ponto de partida para o casamento que ele fez entre arte e ciência.

"A forma como os elementos foram combinados, a figura da Madona, do anjo, do Palácio, a vista e, mais importante ainda, o modo como ele os pintou... Tudo isso demonstra imediatamente o senso de ótica que não corresponde a nenhum outro artista de Florença naquela época", argumenta Francesca Fiorani. É, portanto, segundo ela, a obra-prima de Leonardo, o ponto de partida para o casamento que ele fez entre arte e ciência.

E fazia-o propositadamente, consciente dos princípios científicos que estava a aplicar e que estudava exaustivamente: a musculatura da pata de um cavalo, a forma como a água corre, o comportamento dos tecidos mais delicados, os movimentos das rugas, as microexpressões na linguagem corporal. Os desenhos de Leonardo revelam como tudo isso era estudado minuciosamente antes de ser executado em tela — e, talvez por se embrenhar de tal forma nestes conteúdos, tinha dificuldade em terminar efetivamente os seus trabalhos.

Os sentidos eram o verdadeiro laboratório para Leonardo. “Para ele, aprendíamos através do mundo. O conhecimento sobre o mundo vinha em primeiro lugar daquilo que apreendíamos através dos nossos sentidos. Os dados que nos chegam ao corpo pelos sentidos são processados e é daí que vem o conhecimento“, descreve Francesca Fiorani.

É também daqui que vem a interpretação da luz, a perfeição do Homem Vitruviano, o detalhe dos desenhos sobre os fetos em desenvolvimento no ventre da progenitora, o rigor dos músculos, dos ossos e das articulações. Mas não só: às vezes, durante a noite, Leonardo seguia furtivamente para o cemitério, recolhia os cadáveres que caíam nas ruas, vítimas de crimes, e dissecava-os a segredo do Papa.

Tanques, helicópteros, anatomia. As outras invenções de Leonardo da Vinci vistas por cientistas de hoje

Michaelango, o seu maior rival, tinha autorização da Igreja para fazê-lo. Tinha cunhas: eram um protegido da família Médici, a que o Papa pertencia, e talvez por isso tenha recebido um tratamento especial, contrastante com o de Leonardo. É por isso que, para muitos anatomistas, o verdadeiro pai daquela disciplina não é Versálius, o primeiro a publicar uma obra sobre o esqueleto humano. É Leonardo Da Vinci, que viu cadáveres por dentro e ajudou à sua representação perfeita nas esculturas de Andrea del Verrocchio.

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