O Papa Francisco cumpriu este sábado o segundo dia de uma histórica viagem ao Iraque, com um encontro com o Grande Aiatolá Sayyid Ali Al-Husayni Al-Sistani a marcar a agenda de um dia destinado a promover o diálogo inter-religioso. Durante o encontro, de 45 minutos, os dois responsáveis defenderam uma solução pacífica para o conflito latente entre muçulmanos e cristãos que tem marcado as últimas duas décadas da história do Iraque.
Depois de no primeiro dia se ter encontrado com o primeiro-ministro e o Presidente iraquianos e de ter apelado ao fim da violência e ao diálogo entre as religiões numa catedral que em 2010 foi palco de um dos mais violentos atentados jihadistas contra os cristãos, o líder da Igreja Católica passou a noite na capital iraquiana, Bagdade, de onde partiu ao início desta manhã de avião rumo à cidade sagrada de Najaf, na região sul do país.
Lá, Francisco teve um encontro de cortesia com o Grande Aiatolá Al-Sistani, considerado a mais alta figura da hierarquia do Islão xiita. A reunião de Francisco com Al-Sistani é simbólica de uma proximidade que Francisco tem tentado estabelecer com o mundo muçulmano. Em 2019, durante a sua visita à Arábia Saudita, o Papa já tinha visitado o xeque Ahmed al-Tayeb, grande imã de Al-Azhar e considerado a mais alta autoridade do Islão sunita, com quem assinou uma inédita declaração de fraternidade. Francisco completa assim um roteiro de diálogos com os principais líderes religiosos do Islão, destinado a promover a paz entre as duas maiores religiões do globo.
O encontro deste sábado decorreu à porta fechada, mas tanto o Vaticano como o gabinete do aiatolá divulgaram comunicados e fotografias dando conta dos principais assuntos discutidos entre os dois líderes religiosos.
De acordo com o comunicado do Vaticano, a visita de cortesia teve a duração de cerca de 45 minutos e, durante a reunião, o Papa “sublinhou a importância da colaboração e da amizade entre as comunidades religiosas, de modo que, cultivando o respeito mútuo e o diálogo, se possa contribuir para o bem do Iraque, da região e da humanidade inteira”.
“O encontro deu oportunidade ao Papa de agradecer ao Grande Aiatola Al-Sistani por ter, no meio da violência e das grandes dificuldades dos anos passados, levantado a voz, juntamente com a comunidade xiita, em defesa dos mais frágeis e perseguidos, defendendo a sacralidade da vida humana e a importância da unidade do povo iraquiano“, continua o Vaticano.

▲ O encontro decorreu à porta fechada, mas ambas as partes divulgaram comunicados e imagens
Vatican News
Por seu turno, o gabinete de Al-Sistani, num comunicado citado pela Ecclesia, realçou o “o papel que os grandes líderes religiosos e espirituais devem desempenhar na contenção dessas tragédias”. O líder xiita agradeceu ainda ao Papa Francisco pelo “esforço” de ter viajado até Najaf e salientou que os dois líderes focaram o seu encontro na discussão da “injustiça, opressão, pobreza, perseguição religiosa e ideológica”.
A passagem por Najaf foi um dos pontos altos da viagem de Francisco ao Iraque — a primeira vez que um pontífice visita aquele país do Médio Oriente.
Trata-se de uma cidade sagrada para os muçulmanos xiitas, a expressão religiosa maioritária do país. Acredita-se que se encontre naquela cidade o túmulo do califa Ali, genro de Maomé e considerado pelos xiitas como o primeiro califa legítimo (a grande divisão entre xiitas e sunitas remonta à guerra civil ocorrida logo nas primeiras décadas do Islão entre os partidários de Ali e os apoiantes da linha familiar do califa Utman ibn Affan). A mesquita do Imã Ali, onde se acredita que se encontram os túmulos de Ali, mas também de Adão e de Noé, é um dos lugares de peregrinação mais importantes para os xiitas — que, aliás, creem que o Paraíso descrito no Génesis, onde teriam vivido Adão e Eva, se situa geograficamente em Najaf.
Xiitas e sunitas. Catorze séculos da grande divisão do Islão
“Extremismo e violência são traições da religião”
O programa da viagem papal completou-se este sábado com uma viagem ainda mais a sul, até à cidade de Nassíria, onde o Papa Francisco participou num encontro inter-religioso na planície de Ur. Tal como sucede com Najaf, também a passagem por Ur é particularmente simbólica: acredita-se que seja a cidade natal de Abraão, considerado o pai das três grandes religiões monoteístas. Foi a partir dali que Abraão empreendeu, segundo a Bíblia, o seu caminho rumo à Terra Prometida, que está na origem da história do Cristianismo, do Judaísmo e do Islão.
Por esse motivo, o líder da Igreja Católica apelou aos participantes daquele encontro inter-religioso que recitassem com ele uma simbólica “Oração dos Filhos de Abraão“, através da qual os fiéis das várias religiões abraâmicas pediram a Deus que abrisse os seus corações “ao perdão recíproco”, para que pudessem tornar “instrumentos de reconciliação, construtores duma sociedade mais justa e fraterna”.

▲ O encontro inter-religioso decorreu em Ur, que se acredita ser a terra-natal de Abraão
Anadolu Agency via Getty Images
No encontro inter-religioso participaram líderes muçulmanos, cristãos, mandeus e yazidis, que o Papa Francisco procurou unir com a classificação de “filhos de Abraão”, recordando a história comum das religiões monoteístas no início do seu discurso: “Este lugar abençoado faz-nos pensar nas origens, nos primórdios da obra de Deus, no nascimento das nossas religiões. Aqui, onde viveu o nosso pai Abraão, temos a impressão de regressar a casa. Aqui ele ouviu a chamada de Deus, daqui partiu para uma viagem que mudaria a história”.
“Nós, crentes, não podemos ficar calados, quando o terrorismo abusa da religião. Antes, cabe-nos a nós dissipar com clareza os mal-entendidos”, disse-lhes o Papa Francisco. “Da terra do nosso pai Abraão, afirmamos que Deus é misericordioso e que a ofensa mais blasfema é profanar o seu nome odiando o irmão. Hostilidade, extremismo e violência não nascem dum ânimo religioso: são traições da religião.”
Durante a celebração, foram lidos excertos do livro bíblico do Génesis, comum a judeus e a cristãos, e do Corão. Foram também ouvidos vários testemunhos de iraquianos de várias religiões que contaram, de viva voz, as dificuldades que têm sentido nos últimos anos no diálogo entre credos.
“Hoje, nós — judeus, cristãos e muçulmanos —, juntamente com os irmãos e irmãs doutras religiões, honramos o pai Abraão fazendo como ele: olhamos para o céu e caminhamos sobre a terra”, salientou o Papa Francisco, deixando uma evocação particular aos yazidis, uma minoria religiosa do Curdistão iraquiano que sofreu especialmente os horrores da ocupação do Estado Islâmico.
“De modo particular, quero recordar a comunidade yazidi, que chorou a morte de muitos homens e viu milhares de mulheres, donzelas e crianças raptadas, vendidas como escravas e sujeitas a violências físicas e conversões forçadas”, afirmou o Papa.
Papa evoca mártires e perseguidos em missa em Bagdade
Após uma manhã passada na região sul do Iraque dedicada ao diálogo inter-religioso, o Papa Francisco regressou à capital, Bagdade, onde celebrou uma missa em rito caldeu — o rito católico mais comum no Iraque — na catedral de São José. Foi a primeira missa pública do Papa no Iraque e contou com a presença de um grande número de bispos e religiosos iraquianos, bem como de muitos fiéis que se juntaram no exterior da catedral, apesar das restrições e limitações impostas devido à pandemia da Covid-19.
A missa foi celebrada em várias línguas, incluindo o aramaico — a língua que os cristãos iraquianos ainda preservam e que é uma evolução direta da língua falada por Jesus Cristo —, e nela esteve presente o Presidente do Iraque, Barham Salih, e o patriarca caldeu da Babilónia, o cardeal Louis Raphaël I Sako.

▲ O Papa Francisco celebrou uma missa na catedral de São José, em Bagdade
AFP via Getty Images
Novamente, o Papa Francisco centrou a sua mensagem num apelo ao diálogo e à paz no Médio Oriente, ao mesmo tempo que evocou os mártires da região, que foram “vítimas de preconceitos e ofensas, sofreram maus tratos e perseguições pelo nome de Jesus”.
O líder católico salientou também a importância do território iraquiano para a história do Cristianismo: “A sabedoria foi cultivada nestas terras desde tempos muito antigos. Desde sempre, a sua busca tem fascinado o homem; mas, frequentemente, quem possui mais recursos pode adquirir mais conhecimentos e ter mais oportunidades e os que têm menos são excluídos. É uma desigualdade inaceitável, atualmente em aumento”.