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Não é todos os dias em que a revista do autoproclamado Estado Islâmico (EI) dá conselhos em consonância com aqueles que nos últimos meses temos ouvido de autoridades de saúde nacionais e internacionais, líderes políticos e demais agentes da sociedade civil. Mas numa coisa a Covid-19 juntou-os: na importância de lavar as mãos.
A recomendação surgiu numa edição da revista oficial do EI, a al-Naba, na primeira quinzena de março: “Quem acordar do seu sono (…) deve lavar as mãos três vezes, uma vez que não sabe onde é que as suas mãos passaram a noite.”
Esta era uma de várias recomendações feitas pelo EI aos seus militantes e apoiantes, dispostas numa infografia colorida e com imagens de um vírus, a roxo, dispostas no fundo. Ali, naquelas linhas, deixava-se ainda outra recomendação aos seguidores do grupo terrorista: “Os saudáveis não devem entrar na terra da epidemia e os infetados não devem sair dela”. Ou seja, numa altura em que a Europa (ali descrita como “terra da epidemia”) já era o principal foco da Covid-19 em todo o mundo, a mensagem do EI era uma para os seus combatentes: não vão para lá (para os que estão fora da Europa) ou não saiam daí (em relação àqueles que estão no continente).
Ficava então assente uma ideia simples: tal como muitos de nós, também o EI tem medo do coronavírus. E, por isso, colocou-se numa espécie de confinamento. É isso?
Nem tanto.
Um mês mais tarde, no início de abril, aquela publicação do EI voltava ao tom e ao conteúdo do costume. Deixando para trás o apelo à higiene e a recomendação para que não sejam feitas deslocações necessárias, a al-Naba dirigiu-se aos militantes do grupo terrorista para os desafiar a fazerem aquilo que é um dos seus imperativos: atacar os “infiéis”, sobretudo o Ocidente.
“O medo do contágio afetou-os mais do que o contágio em si”, lia-se. E, depois, a explicação de que esse “medo” pode ser uma oportunidade de ouro para o EI. “A última coisa que eles querem é enviar mais soldados para as regiões onde esta doença ainda se pode espalhar ou movimentar em massa as suas forças de segurança e soldados dentro dos seus países para minimizar os ajuntamentos de massas e os contactos entre pessoas de todas as profissões.”

▲ Depois do apogeu entre 2014 e 2016, o Estado Islâmico foi reduzido a uma estrutura precária e quase insignificante. Porém, com a Covid-19, pode voltar a crescer (DELIL SOULEIMAN/AFP via Getty Images)
DELIL SOULEIMAN/AFP via Getty Images
Em menos de um mês, aquele grupo terrorista de funcionamento monolítico quebrou essa mesma imagem oferecendo mensagens distintas — e por isso confusas — em torno do novo coronavírus, começando pelo medo e regressando ao desafio. Só esta inconsistência pode servir de janela para aquilo pode ser uma certa paralisia do EI, à procura de um novo modelo de funcionamento em tempos de pandemia.
Não foram a única organização terrorista de inspiração islâmica a pronunciarem-se sobre a Covid-19.
Os talibã, concentrados no Afeganistão, têm procurado promover uma imagem de um certo estadismo, garantindo que “se houver um surto numa área que nós controlemos, podemos suspender os combates”. Ao mesmo tempo divulgou imagens de médicos a distribuir máscaras e produtos de higiene nesses territórios — e admitiu que a Covid-19 “pode ter sido enviada por Alá por causa da desobediência e dos pecados da humanidade”.
A al-Shabaab, com presença acima de tudo na região do Corno de África, aponta para o Ocidente e regozija-se com as mortes do Covid-19 nos países que o formam. Num sermão na Somália, o clérigo muçulmano Fuad Mohamed Khalaf, membro da al-Shabaab, disse que “os muçulmanos devem estar felizes com o sofrimento os infiéis” e sublinhou que o coronavírus “expôs as fraquezas dos EUA e dos seus aliados”.
A al-Qaeda alinhou com essa explicação ao referir que a Covid-19 é uma consequência “dos nossos próprios pecados” e da “obscenidade e corrupção moral” — e que esta era a oportunidade de “espalhar a fé adequada, chamar pessoas para a jihad em nome de Alá e criar uma revolta contra a opressão e os opressores”. O grupo terrorista atirou ainda contra “o avanço tecnológico” e contra a “globalização”, “das quais o Homem tanto se orgulhou [e que são agora] a sua desgraça”. “Hoje, se alguém espirrar na China, quem está em Nova Iorque sofre as consequências”, resumiu aquele grupo.
Se cada grupo parece ter uma mensagem diferente para abordar a Covid-19, nenhum parece demonstrar tantas inconsistências na sua propaganda como o autoproclamado Estado Islâmico. “O discurso deles tem sido incoerente porque também eles ainda não perceberam totalmente como funciona este vírus”, diz ao Observador Elisabeth Kendall, investigadora da Universidade de Oxford e especialista no estudo do terrorismo de inspiração islâmica.
Ainda assim, sublinha aquela investigadora britânica, essa incoerência na mensagem — “que não é de todo inédita”, acrescenta — não impede os grupos terroristas, incluindo o EI, de beneficiarem com a crise do coronavírus. Tanto que aponta “dois caminhos” para que isso possa acontecer.
“Primeiro porque os países ocidentais vão perder o interesse em manter uma guerra contra eles, em parte porque estamos a retirar as nossas tropas de alguns locais para estarem a salvo do vírus, e também porque vamos ficar financeiramente limitados depois disto tudo”, diz, apontando que este é um desenvolvimento “egoísta” do qual os terroristas podem tirar partido.
O segundo, tem a ver com a vulnerabilidade — a mesma apontada na al-Naba do início de abril, onde os terroristas do EI destacavam que, mais do que o contágio, foi o “medo do contágio” que nos paralisou.
“É nos tempos conturbados que os grupos terroristas encontram mais prosperidade. Pode ser um desastre natural, causado pelo ser humano ou um conflito de qualquer tipo. Nessas ocasiões, é frequente que grupos como o EI consigam crescer mais do que em qualquer outro momento”, explica aquela especialista.
Em plena pandemia da Covid-19, por que vias pode o autoproclamado Estado Islâmico obter esse crescimento? Ninguém pode prevê-lo com exatidão. Ainda assim, importa olhar para o que se passa em duas dimensões: primeiro, no terreno; depois, na internet.
O vácuo tão ansiado no Médio Oriente — e o caminho aberto em Moçambique
No Médio Oriente, há razões de sobra para o EI ter saudades dos seu passado.
Não foi assim há tanto tempo. Em janeiro de 2014, vingando como poucos no caos em que a Síria já estava profundamente mergulhada, o EI conseguiu conquistar a cidade de Raqqa e, à volta desta, a maior parte do território (mas nunca a maior parte da população) da Síria, incluindo a região de produção petrolífera daquele país. Em simultâneo, o EI crescia também no Iraque, onde passou a ter, igualmente em 2014, o controlo de cidades como Mossul, onde foi proclamado o califado — e pouco faltou para invadir Bagdade, da qual chegou a estar às portas.
Agora, muito pouco sobra de tudo aquilo. Atacados a partir de várias frentes — incluindo de inimigos ou rivais, como grupos terroristas de um lado e o exército sírio de Bashar al-Assad e outras forças xiitas do outro; tropas curdas e o militares iraquianos; forças de países da NATO e da Rússia — os terroristas do EI acabaram por perder terreno e até o seu líder, Abu Bakr al-Baghdadi, morto por tropas norte-americanas e curdas em outubro de 2019 na cidade síria de Idlib. Das mesquitas de Mossul à distopia reinante em Raqqa, os poucos militantes do EI que escaparam à aliança estão hoje confinados a pequenos enclaves de território na Síria e no Iraque. Escondidos em grutas e sem grandes cidades no seu controlo, o antes grande grupo terrorista está agora disperso e ferido.
É cedo, porém, para dizer que o EI está ferido de morte. E se o copo meio cheio garante que o EI perdeu muito nos últimos três anos, o copo meio vazio lembra que foi também a partir de uma posição de fraqueza que aquele grupo se multiplicou — tudo porque soube identificar, entre o Iraque destruído pela invasão norte-americana e com um vazio de poder e a Síria em guerra, exatamente por onde podia crescer.
À semelhança dos espaços criados no início da década passada, esses espaços podem estar a ser criados em 2020. Esta é uma realidade que remonta a tempos pré-pandemia. Se no pico do sucesso da luta contra o EI, em 2017, era possível ver, no Iraque, como tropas norte-americanas se articulavam com os militares iraquianos, a aproximação do Iraque ao Irão rapidamente fragilizou aquela relação. Esta acabou por ser dinamitada por ataques a bases norte-americanas por forças iranianas e pela resposta dos EUA, que mataram num ataque de drone em janeiro o então comandante do exército iraniano, Qasem Soleimani.
A tensão levou a um voto favorável do parlamento iraquiano para ser feito um plano de expulsão das tropas norte-americanas do Iraque — e, mesmo que os EUA tenham rejeitado por completo essa ideia, o facto é que a nova dinâmica naquela região levou os norte-americanos a recolherem.
À Foreign Policy, o tenente coronel Tim Garland, que dirige o combate ao EI no Iraque a partir da base aérea de Ain al-Asad, explicou que em tempos patrulhavam uma área do tamanho do Texas (que tem aproximadamente 695 mil metros quadrados) e que agora só o fazem numa área equivalente à cidade de Dallas, que tem mil quilómetros quadrados. À escala de Lisboa, é o mesmo que passar de patrulhar todo o concelho para fazê-lo em apenas metade da Graça.

▲ (MAHMUD SALEH/AFP via Getty Images)
MAHMUD SALEH/AFP via Getty Images
Esse recolhimento, que já gerava preocupações a vários observadores daquela região, aumentou ainda mais com o novo coronavírus. A 23 de março, o Departamento de Estado dos EUA anunciava em comunicado que devido ao “desafio sem precedentes colocado pela pandemia da Covid-19”, seria feitos “ajustes temporários” que no fundo resultaram no recolhimento de 5 mil tropas norte-americanas em bases militares do seu controlo. Quanto às missões de treino das tropas iraquianas por parte da NATO — onde se incluiu Portugal, além da Austrália, Espanha, Holanda, Nova Zelândia e Reino Unido —, a decisão foi de retirar os militares. No caso dos portugueses, saíram todos: 30 regressaram ao nosso país a 30 de março e dois foram para o Kuwait.
“O EI, que tem estado na mó de baixo nos últimos anos, está desejoso de regressar e preencher este vácuo, reforçado pela rápida retirada de tropas dos EUA e aliadas que prestavam apoio ao exército iraquiano”, escreve na Foreign Policy a jornalista Pesha Magid, que vive no Iraque, adiantando que esse vácuo pode ser preenchido não só pelo aparentemente adormecido Estado Islâmico, como por milícias xiitas apoiadas pelo Irão. “O possível desfecho que preocupa muitos iraquianos é que o país se torne num novo campo de batalha entre os sunitas do EI e os xiitas do Irão.”
Militares portugueses regressaram do Iraque e vão cumprir quarentena
Essa mesma preocupação é sublinhada num relatório do think-tank International Crisis Group. “Se o apoio da coligação internacional, que já tinha sido desestabilizada pela tensão entre os EUA e o Irão, for ainda mais comprometido pelo coronavírus e pela compreensível tendência dos países-membro da coligação para recuarem, o Estado iraquiano, que também está a lidar com um surto, terá muito provavelmente dificuldades para conter os insurgentes do EI”, lê-se naquele relatório publicado a 31 de março.

▲ Dois peregrinos xiitas iraquianos caminham para uma mesquita em Kadhimiya, no norte de Bagdade, a 20 de março (AHMAD AL-RUBAYE/AFP via Getty Images)
AHMAD AL-RUBAYE/AFP via Getty Images
Por isso, naquela região em que um vasto conjunto de potências (não se pode falar de uma aliança tout-court, já que rivais como EUA e Irão combatem, cada um do seu lado, o EI) empenharam meios para combater este grupo terrorista, é real a possibilidade de o vácuo por elas deixado ser preenchido.
Pior ainda poderá ser a situação em países que não contam com quaisquer estruturas robustas para combater aqueles que dizem agir em nome do Estado Islâmico noutras geografias. Um desses casos é na província de moçambicana de Cabo Delgado, onde se estima que um grupo terrorista de inspiração islâmica (que se associa ao Estado Islâmico (e este, através dos seus canais, corrobora essa ligação, reivindicando os ataques ali cometidos) tenha à volta de 3 mil soldados e mais de 500 vítimas mortais no seu currículo.
Esta segunda-feira, a Polícia de Moçambique confirmou a morte de 52 jovens em Cabo Delgado, na sequência de um ataque daquele grupo que aconteceu a 7 de abril. De acordo com o que disse o porta-voz da polícia, Orlando Modumane, aquela autoproclamada célula do Estado Islâmico matou os jovens de “forma cruel e diabólica” depois de estes terem rejeitado serem recrutados para as fileiras do grupo. “O que desatou a ira dos agressores, que os alvejaram e mataram”, explicou o porta-voz.
O Governo de Moçambique tem hesitado em fazer um pedido expresso e público de ajuda para combater a insurreição terrorista no Cabo Delgado, optando antes por contratar (sem que daí tenha retirado evidentes benefícios) empresas privadas que para ali destacam mercenários, como foi o caso da Wagner (da Rússia, detida por um homem próximo de Vladimir Putin) e mais recentemente da África do Sul. Agora, numa altura em que muitos aliados de Moçambique (como Portugal) fazem contas perante o que pode vir a ser a maior recessão em quase um século, não é certo que digam “pronto” quando este finalmente os chamar.
Na Internet — e o que dela pode surgir, sobretudo na Europa
Para Elisabeth Kendall, o combate ao EI terá de passar ainda mais pela monitorização de um espaço amplo e difuso, que este grupo terrorista utilizou com uma eficácia e um alcance até agora ímpares entre organizações terroristas: a internet.
Por isso, defende que a vigilância da propaganda deste e de outros grupos terroristas é importante — sobretudo daqueles que estão na Europa. “Quem não estiver a ler e a assistir à propaganda deles, não vai entender as suas aspirações”, sublinha. “Agora que eles não têm nenhum sítio com o que sonhar, como faziam com Raqqa, a internet passou a ser ainda mais o seu terreno essencial.”
Um bom sinal de que essa vigilância está a ser feita foram as noticiadas duas detenções de militantes do EI na Europa em plena pandemia e com decretos de confinamento a valer. A 15 de abril, foram detidos na Alemanha quatro suspeitos de organizarem um ataque a uma base militar norte-americana naquele país. Mais sonante ainda foi a detenção em Almería, no sul de Espanha, de Abdel-Majed Abdel Bary — um ex-combatente do autoproclamado Estado Islâmico no Iraque e na Síria, de nacionalidade britânica e ascendência egípcia, que era um dos terroristas mais procurados na Europa.
Así detuvimos en #Almería a uno de los Foreign Terrorist Fighters de DAESH más buscados de #Europa. De nacionalidad egipcia, habría entrado ilegalmente en España y se ocultaba en un piso de alquiler. También se arrestó a otras dos personas que lo acompañaban pic.twitter.com/14f2v2brEg
— Policía Nacional (@policia) April 21, 2020
Porém, tanto num caso como no outro, as autoridades detiveram convertidos de longa data que estavam já debaixo do seu radar. Agora, em tempos de pandemia e com tudo o que ela traz, o desafio passará por encontrar os recém-convertidos — e pará-los a tempo.
Elisabeth Kendall refere que neste momento, no continente europeu, os “maiores riscos são de longo prazo”, prendendo-se precisamente com o acolhimento que a mensagem de grupos como o EI pode ter junto de jovens como aqueles que protagonizaram sangrentos ataques terroristas numa longa lista de acontecimentos, como os atentados de Paris, Nice ou Manchester.
“Se a economia tiver uma recaída enorme, como se prevê, há muitas pessoas que vão ficar desempregadas e muitas aspirações vão ser simplesmente esmagadas. Isso faz dos nossos tempos muito perigosos em termos de segurança”, diz. Tal como em situações anteriores, jovens como aqueles podem ser recrutados através de mensagens simples, agora com a Covid-19 em pano de fundo. “A alguns jovens, para que eles tomem atenção à mensagem do EI, basta que lhes digam ‘vocês foram injustiçados, os ricos puderam isolar-se nas suas casas e vocês, os pobres de Paris, Londres e Bruxelas, ficaram encafuados em prédios a desfazerem-se aos bocados porque os governos não querem saber de vocês'”, exemplifica.
Essa retórica, porém, pode não funcionar — e os terroristas do EI podem até rejeitá-la. É nessa direção que aponta Aymenn Al-Tamimi, investigador britânico que se tem destacado no estudo do Estado Islâmico, numa troca de e-mails com o Observador. “A máquina de propaganda já não tem o mesmo apelo”, assegura. Além disso, este investigador não acredita que o EI procure recrutar militantes na Europa apelando a um possível sentimento injustiça económica. “Os argumentos para a causa deles continuam a ser os mesmos”, refere, rejeitando a possibilidade de uma mudança retórica nesta fase.

▲ Distribuição gratuita comida em Clichy-sous-Bois, nos subúrbios de Paris (LUDOVIC MARIN/AFP via Getty Images)
LUDOVIC MARIN/AFP via Getty Images
Do seu lado, a investigadora de Oxford admite que as autoridades europeias melhoraram em muito a sua ação. “A internet está muito mais segura agora. Já não basta fazer uma simples busca no Google para ver vídeos de um piloto da Jordânia a arder e as redes como o Telegram são agora muito mais vigiadas”, refere. Porém, Elisabeth Kendall mantém a certeza de que, tal como no combate a qualquer tipo de crime, quem está à frente são sempre os terroristas: “Eles têm demonstrado uma tendência para serem um pouco como a água: se houver um buraco, eles preenchem-no”.