O Rock in Rio Lisboa foge do hip hop como o diabo na cruz. O festival realiza-se desde 2004 e já teve bandas de rock, bandas de metal, cantores pop e DJs de música eletrónica como cabeças de cartaz de pelo menos um dia. Rappers, até hoje, não teve nenhum: o americano Mac Miller atuou em 2014, mas numa noite em que o grande destaque era Justin Timberlake.

A novidade é que na atual edição o hip hop começou a ser introduzido. Subtilmente, é certo, mas foi-o: no palco secundário do festival (o palco Music Valley), este domingo, vários dos artistas que ali atuaram fazem hip hop. Até hoje, nunca um palco do Rock in Rio tinha recebido tantos artistas deste género musical num só dia.

Terá sido um dia que não se repetirá na história do Rock in Rio ou  servirá de tubo de ensaio a uma ligeira alteração de programação no futuro? A dúvida só será tirada nos próximos anos, mas o Observador quis ouvir alguns dos concertos deste palco para perceber como reagiu o público a um género musical que, diz-se, está de tão boa saúde.

Língua Franca sem Valete mas com Sara Tavares

Há alguns meses que se ouviam rumores sobre um possível afastamento de Valete do projeto Língua Franca, coletivo luso-brasileiro que este ajudou a formar. Já no ano passado, no festival Super Bock Super Rock, notou-se alguma distância entre o autor de “Roleta Russa” e Capicua, Emicida e Rael, os restantes elementos do grupo. Mais afastado, mais sorumbático, menos efusivo nas palavras, Valete parecia uma espécie de convidado e não um dos membros do quarteto. Aquando desse concerto, o grupo tinha acabado de editar o seu primeiro (até agora único) álbum conjunto.

Este domingo, no concerto dos Língua Franca no Rock in Rio, Valete não apareceu. E quando o brasileiro Emicida cantou, no último tema do concerto, “Amigo que é amigo nunca falha / sempre contigo em qualquer batalha”, é difícil não encontrar alguma ironia no momento. É que os versos foram escritos e cantados por Valete no álbum que Rael, Emicida e Capicua foram apresentar ao palco Music Valley. E na “batalha” do festival, o rapper esteve ausente…

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Talvez se pensasse que o concerto perderia interesse devido à ausência de Valete mas na verdade aconteceu o contrário: o trio convidou Sara Tavares para substituir o rapper e o registo da cantora portuguesa de ascendência cabo-verdiana, mais festivo e menos pesado do que o de Valete, até acompanhou melhor a festa luso-brasileira dos Língua Franca em plena tarde. Uma festa para um público que preencheu bem o espaço em frente ao palco.

A entrada da cantora em palco deu-se já depois do início do concerto, ao som de “AFRODite”, tema dos Língua Franca cujo refrão é cantado por Sara Tavares inclusivamente no disco. Um dos momentos altos do concerto veio logo a seguir, quando a cantora pegou na guitarra acústica e apresentou o seu belíssimo single Coisas Bunitas, do último álbum de Sara Tavares, Fitxadu. A canção ficou ainda melhor com os versos de Capicua, cuidadosamente introduzidos no balanço africano do tema.

“Que prazer é tocar aí com esses manos”, disse Sara Tavares depois de “Coisas Bunitas”. Elogiaram-se os sotaques, as origens, a junção das culturas portuguesa, brasileira e cabo-verdiana no mesmo palco. E a plateia correspondeu, dançando e mostrando bandeiras dos três países. A mistura de canções dos Língua Franca com canções de Sara Tavares prosseguiu e a cantora introduziu “Balancê” (tema antigo, do seu segundo álbum de estúdio, editado em 2005) entre as rimas positivistas e socialmente interventivas de Rael e Emicida.

A cantora saiu do palco e o trio Língua Franca dedicou-se em exclusivo a temas originais do grupo, como “Lei” (“O rap é a minha lei”) e “A Chapa É Quente”. O concerto terminou com a canção “Amigos” e com os quatro a celebrarem o momento no palco. “Meu coração está cheio de alegria nessa tarde. Obrigado Rock in Rio”, despediu-se Emicida. Foi bem tratada, a língua comum. Seguiram-se os HMB, que apresentaram a sua pop influenciada pela soul e gospel para muito público.

Bispo: “Tragam aqui a Anitta”

Chapéu com pala para trás, calção com padrão militar e uma t-shirt preta com um número especial inscrito: 2725, o código postal de Algueirão, Mem Martins, freguesia onde Bispo (Pedro Bispo) nasceu e cresceu. O jovem rapper e cantor português é fiel às suas raízes, dedica aliás alguns versos à localidade de Sintra e apresentou-se com essa indumentária no palco Music Valley, este domingo.

Bispo teve muito pouco público a assistir ao concerto desde início. Mas parecia estrar tranquilo quanto a isso: “Ver o meu ‘cota’ e a minha irmã na fila da frente vale mais do que tocar numa casa com 160 mil pessoas”, apontou a certa altura. Os motivos para o pouco público presente? A hora, 20h10, não era a mais convidativa: muitos festivaleiros aproveitaram para jantar. O cartaz do Rock in Rio, que atraiu poucos fãs incondicionais de hip hop (não tem nenhum cabeça de cartaz desse género), foi outra dificuldade. E a concorrência de Anitta também não é de menosprezar, até porque os fãs de Bispo são, na sua maioria, jovens e Anitta é muito popular entre os mais novos.

O rapper bem gracejou: “Tragam aqui a Anitta, convidem-na para vir aqui cantar connosco. Eu já vou falar com ela”. Porém, se o passar dos minutos ajudou a compor um pouco a plateia, esta nunca ficou verdadeiramente cheia, nem perto disso.

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Quem lá estava sabia as letras de cor. Bispo tem já um álbum e um EP editado, tem quatro canções que superam os dois milhões de visualizações no Youtube, mas prevê-se que ganhe maior notoriedade quando lançar o seu primeiro disco com a Sony Music — editora com a qual assinou contrato no verão passado.

O concerto foi morno — porque o público era diminuto — mas teve alguns pontos altos. Bispo teve consigo um DJ a ajudá-lo nos instrumentos (mas que também fez uma perninha a rimar), um guitarrista talentoso (Frankie Batista) a acompanhá-lo em alguns temas, que chegou a tocar guitarra com esta atrás do pescoço, e um cantor que garantiu as segundas vozes e ajudou nas rimas. O último, Ivandro, é um cantor de R&B que se está a tentar lançar a solo e cuja voz é digna herdeira de algumas das melhores desse género musical.

Bispo foi inteligente em guardar alguns dos momentos fortes do concerto para uma fase final, em que tinha mais público. Foi o caso de “Não Fui Sincero” e “Como Dá”, temas do seu último EP, de “Necessidade”, tema com instrumental de Sam the Kid que Bispo apresentou ao vivo numa versão mais cantado e menos próximo da versão rap de estúdio, do novo tema “NÓS2”, para o qual chamou o cantor Deezy ao palco, de “Mentalidade Free”, em que homenageou a sua terra de berço, e de “Pormenores”, uma parceria com Sam the Kid que a apresentou com Bispo em palco.

“Foram eles que há 10 anos e há 20 anos nos abriram as portas para estarmos aqui hoje”, afirmou Bispo enquanto Sam the Kid se retirava do palco. “Temos de agradecer, de bater continência. Passo a passo, [o trabalho] compensa”, disse ainda. O “cota” e a irmã de Bispo não assistiram a um concerto marcante no percurso do rapper, que já tocou para bem mais gente,  mas viram um jovem cujo registo musical, próximo do rap mas também influenciado pela pop ligeira, pode levá-lo a tocar para públicos grandes no futuro. Inclusivamente, ou até principalmente, em festivais tão “generalistas” e de massas quanto o Rock in Rio.

Festa com Supa Squad, rimas com Dillaz

O final do concerto de Demi Lovato no Palco Mundo coincidiu mais ou menos com o final do concerto dos Supa Squad. Apesar de as atenções estarem todas naturalmente voltadas para o palco principal do Rock in Rio, o Music Valley encheu para receber Mr. Marley e Zacky Man, o duo de origem cabo-verdiana que mistura, sem qualquer pudor, géneros como new roots, reggae e dancehall. E foi precisamente numa grande pista de dança que os Supa Squad transformaram o palco Music Valley. Não houve uma pessoa que conseguisse manter-se parada ao som dos ritmos quentes do duo.

Foi quase com pena que o público se despediu de Marley e Zacky para receber as rimas de Dillaz. O rapper subiu ao palco meia hora antes de Bruno Mars e foi precisamente durante meia hora que conseguiu manter a maioria da audiência. Como seria de esperar, foram muitos os escolheram abandonar o espaço para se dirigir até ao extremo oposto do parque.

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Dillaz, que lançou recentemente um novo disco, Reflexo, escrito e produzido por si, aproveitou o concerto do Rock in Rio para mostrar alguns dos temas novos, como “Sonhar Nesta Vida” ou “Eu Estou Bem”. Este último conta com a participação de Vulto, que integra juntamente com Dillaz, Spliff e Zeca os M75, que acompanharam o rapper nesta noite de domingo. Sempre de língua afiada, apelando aos “agressivos” e “agressivas” que se deslocaram até à Bela Vista (numa referência ao tema “Não Sejas Agressiva”), Dillaz revisitou também os discos mais antigos, como os volumes Sagrada Família.

Mishlawi: um concerto “íntimo” que tentou resistir a Bruno Mars

Mishlawi já esperaria ter pouco público este domingo no Rock In Rio, dado que começou a sua atuação no palco Music Valley às 23h45, quando Bruno Mars não ia sequer a meio do seu concerto. Mas algumas dezenas de pessoas (possivelmente pouco mais de uma centena) acompanharam a totalidade da atuação do jovem norte-americano residente em Cascais.

“Aparentemente está a acontecer outro concerto num outro palco, de que não estou a par”, atirou a certa altura Mishlawi, em inglês (falou também ocasionalmente em português com o público, dado que já vive no país há alguns anos). “Não me interessa se estão cinco pessoas ou cinco mil”, disse ainda, “obrigado por estarem aí. Valorizo isso.”

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Com um registo que lembra um pouco o do canadiano Drake (pela forma de rimar, por misturar rimas e refrões cantados e até pelos temas que aborda nas suas canções, do amor à sexualidade e dificuldade de comunicação numa era de novas tecnologias), Mishlawi ainda não editou nenhum álbum mas tem vários singles lançados. A sua popularidade tem crescido de forma progressiva mas muito significativa na Internet e até Elton John está atento ao percurso deste jovem talento.

Apresentando-se com banda completa e não apenas com DJ (como acontecera com alguns dos seus antecessores no palco secundário do festival, desde logo Bispo), Mishlawi apresentou temas como o novo “FMR” (sigla que significa “Fuck Me Right”), “Turn Back”, “Homies & Pyttons Freestyle”, “Boohoo” (tema que gravou com Richie Campbell, que pertence à mesma agência e editora de Mishlawi, Bridgetown), “Afterthought” (parceria com Trace Nova), “Ignore”, “All Night”.

Como o concerto era “íntimo”, disse Mishlawi (a propósito do público presente, menor do que aquele que está habituado a encontrar), houve pedidos para os presentes levantarem os telemóveis e houve cumprimentos do rapper-cantor aos fãs na primeira fila. Se já se esperava que o público fosse pouco (competir com Bruno Mars era evidentemente impossível), Mishlawi voltou a deixar boa imagem e a impressão de que, lançando um álbum completo e afinando os seus espetáculos ao vivo, chegará com naturalidade aos grandes palcos.