Em dia de Conselho Europeu, os analistas de mercados financeiros estão a preparar-se “uma noite longa e inconclusiva” que, acreditam, apenas irá produzir, no final, pouco mais do que um comunicado vago em que os líderes europeus vão “concordar em discordar” sobre as medidas a tomar para combater o impacto económico da pandemia – desde logo, sem esclarecer se o famigerado “Fundo de Recuperação” irá ser a fundo perdido ou assentará em dívida de cada país. A expectativa dos analistas é que, no melhor dos cenários, será anunciado um plano com “grandes números” mas que, “à boa tradição europeia”, terá menos substância do que parece – como acontece com o plano apresentado a 9 de abril pelo Eurogrupo, liderado por Mário Centeno.
Os mercados mostraram muito pouco entusiasmo em relação ao plano anunciado pelo Eurogrupo porque, repetindo-se o padrão que se viu na crise da dívida europeia (ou, até, no chamado “Plano Juncker”): mais uma vez, cumpriu-se “a histórica tradição da União Europeia de apresentar planos com grandes números… aos quais se chega com grande criatividade“, dizem os economistas do Berenberg.
Fala-se de quê, concretamente? Por exemplo, a maior componente dos 540 mil milhões anunciados por Mário Centeno está relacionada com a possibilidade de os países recorrerem ao Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE) numa proporção de até 2% do respetivo PIB. Os 240 mil milhões não são mais, portanto, do que a soma aproximada de 2% do PIB de cada país (cerca de 4.000 milhões no caso de Portugal). Mas essa soma inclui 2% do PIB da Alemanha, 2% do PIB de França, 2% do PIB da Holanda, e por aí em diante.
“A questão é que, para a maior dos membros da zona euro, os custos de financiamento já são tão baixos que não têm qualquer vantagem em pedir o apoio do MEE“, referem os economistas. Ou seja, disponibilizar os fundos do MEE para todos é uma forma de ajudar alguns países a limitar os seus próprios custos de financiamento – tanto no próprio MEE como, indiretamente, nos mercados financeiros – e aproximá-los dos custos que pagam os emitentes percecionados como mais “seguros”, como o estado federal alemão. Nessa perspetiva, que vantagem teria a Alemanha de recorrer ao MEE quando já pode aceder a esses juros mais baixos sozinha?
Isto faz com que os 240 milhões de euros da componente MEE do plano de Centeno correspondam, na verdade, a menos de um terço: algo como 70 a 75 mil milhões, calcula o Berenberg, somando 2% do PIB dos países que têm maior probabilidade de recorrer ao mecanismo, incluindo a Itália, que poderia “levar” cerca de 40 mil milhões.
A taxa de juro da Alemanha a 10 anos é inferior, nesta altura, a -0,4% (juros negativos), o que contrasta com os 1,2% (positivos) de Portugal, os 1% de Espanha e os mais de 2% de Itália, que esta sexta-feira arrisca ver a agência S&P a cortar-lhe o rating. Mesmo com as medidas de estímulo e intervenção anunciadas pelo Banco Central Europeu, os mercados já estão a refletir nas taxas de juro exigidas a vários países um risco adicional de que algumas economias terão mais dificuldade do que outras em responder à pandemia e relançar a economia. Mas essa divergência poderá acentuar-se caso a indefinição se arraste, por muito que o BCE garanta que não irá tolerar uma maior “fragmentação” dos custos de financiamento dos países.
O primeiro-ministro, António Costa, fez saber em antecipação ao Conselho Europeu desta quinta-feira que o seu “plano A” de resposta europeia à crise passaria por uma ‘bazuca’ de “magnitude muito significativa” – entre 1 a 1,5 biliões de euros – assente em emissão de dívida por parte da UE. “Para termos uma bazuca com esta dimensão é necessário que a UE mobilize recursos, que não são de forma imediata mobilizáveis pelos diferentes estados-membros. Por isso, a melhor forma de fazer é proceder à emissão de dívida e a melhor forma de proceder à emissão de dívida é por parte da UE”, comentou o primeiro-ministro, repetindo que uma subvenção não-reembolsável, a fundo perdido, seria a forma mais eficaz.
Plano “A” de Costa para resposta europeia à crise é “bazuca” de cerca de 1,5 biliões de euros
Mas, para isso, faltam os consensos a nível europeu. “E o mais provável é que os líderes europeus não consigam resolver esse conflito esta noite“, lamentam Holger Schmieding e Florian Hense, economistas do Berenberg. Os dois economistas, que escrevem a partir de Londres, avisam que, a confirmar-se a falta de uma mensagem política de união – mais do que grandes números e parangonas – isso “poderá revelar-se um erro dispendioso“.
“Quanto mais tempo se arrastarem as divergências [entre uns países e outros, no seio da UE/zona euro] maior e mais generoso terá de ser o pacote que acabará por ter de ser apresentado”, avisam os economistas do Berenberg.
Costa já admitiu no debate parlamentar de quarta-feira que neste Conselho Europeu “não vai haver qualquer decisão final”. “As conclusões vão ser congratular os resultados do Eurogrupo e mandatar a Comissão Europeia para preparar o programa de recuperação”, adivinhou. O jornal Politico adiantou esta quinta-feira, até, que nem vai haver uma tentativa de procurar um consenso para um texto final acordado por todos – o que será substituído por uma declaração que vincula apenas o presidente do Conselho Europeu, Charles Michel, o que terá necessariamente menos impacto.
Bola para aqui, bola para ali
O Conselho Europeu tinha mandatado o Eurogrupo para estudar medidas de combate à crise, que passado duas semanas chegou ao acordo já citado e, além disso, devolveu a bola ao Conselho Europeu para que discutam as formas “inovadoras” como se pode dinamizar a retoma económica, designadamente envolvendo o orçamento comunitário. Agora, a julgar pelo texto da convocatória da reunião desta quinta-feira, enviado pelo presidente Charles Michel, o Conselho Europeu deverá voltar a chutar a bola para a Comissão Europeia para que esta “avalie as necessidades exatas” e conceba uma “proposta que seja comensurável com o desafio que enfrentamos”.
Os analistas do holandês Rabobank, em Londres, argumentam que “alguns segmentos dos mercados financeiros parecem estar a antecipar um resultado substancial, na reunião desta quinta-feira, com conclusões ou decisões concretas” mas “na nossa opinião, não é provável que existam progressos, por exemplo, na criação de um fundo capaz de ajudar países como a Itália a recuperar desta crise”. O texto distribuído por Charles Michel, dizem os analistas, “quase garante que haverá muito pouco de substancial a materializar-se esta noite”.
“O mais provável é que se diga, na manhã de sexta-feira, que os líderes europeus trabalharam de forma construtiva até tarde e que concordaram em continuar a trabalhar nas diferentes propostas em cima da mesa. Uma falta de detalhes concretos que será um sintoma das divisões profundas que existem, entre os Estados-membros, sobre a forma como se devem partilhar os encargos associados ao combate a esta crise”, escrevem os analistas em nota de análise.
Países como Itália, França, Espanha e Portugal vão continuar a defender uma mutualização do esforço de relançamento das economias, ao passo que outros membros, como a Alemanha, a Áustria e a Holanda continuam a fechar a porta a essa possibilidade. E, assim, não se sai da cepa torta: “apoios a que se emita mais dívida, mesmo que a custos controlados, não altera o facto de que alguns dos países com maiores necessidades já tinham, à entrada para esta crise, rácios de endividamento elevados, que apenas se tornarão ainda maiores se os países receberem mais empréstimos europeus”, escreve a equipa de analistas liderada por Richard McGuire, do Rabobank.
Os analistas dizem que “ainda que os preços e as condições desses empréstimos sejam, provavelmente, mais atrativos do que Itália ou outros países da ‘periferia’ conseguem individualmente obter nos mercados, mantém-se uma situação em que a resposta dos países acabará por agravar o fardo de dívida, a longo prazo, dos países mais afetados pelo vírus”, podendo-se voltar a gerar receios sobre a sustentabilidade da dívida, potencialmente levando a um círculo vicioso de cortes de rating e custos de financiamento ainda mais elevados.
Porque é que as agências de “rating” estão tão caladas? (E até quando vão continuar assim?)
A Alemanha mostrou-se disponível, porém, para que a maior economia europeia aceite aumentar as suas contribuições para o quadro comunitário plurianual de apoios financeiros (2021-2027). É pouco provável que sejam concretizados acordos definitivos, nessa área, numa reunião do Conselho Europeu como a que decorre esta tarde. Mas é possível que surjam respostas, mesmo que incompletas, a uma das questões mais cruciais que ainda permanecem: caso os países venham a receber subsídios (a fundo perdido) isso virá do quadro comunitário 2021-2027 ou poderá ser criado um orçamento especial?
Além disso, os investidores querem, também, perceber qual será a dimensão do tal “Fundo de Recuperação”, que ‘prazo de validade’ terá, como poderá ser usado e com que limites. Esses detalhes, a par de uma mensagem política de aproximação entre os países, serão os elementos que farão deste Conselho Europeu um sucesso ou… um fracasso. “E se o resultado for um fracasso, se não houver evidências de algum progresso – além de dizer que as negociações vão continuar – então as taxas de juro dos países podem divergir, mesmo com a intervenção agressiva do BCE nos mercados”, dizem os economistas do Berenberg. “Se assim for, os líderes europeus podem ser forçados a marcar uma nova reunião para daqui a muito pouco tempo”, acrescentam.