“Prazer, Camaradas!” traz algo diferente do 25 de Abril. Ponto de partida: os jovens que foram trabalhar para as cooperativas nas herdades ocupadas no Ribatejo, entre exilados e estrangeiros. Alguns queriam fazer a revolução, outros procuravam perceber o que se passava. Até aqui nada de novo, mas José Filipe Costa resolveu construir um filme através de relatos escritos, textos literários, textos de época e história oral para falar da sexualidade naquelas herdades. E não só.
Logo nos primeiros instantes, o filme distancia-se da ideia de documentário. As personagens que começam a ser apresentadas ao espectador são atores e não-atores que estão a interpretar com o corpo de hoje os jovens de 1975. É, como o realizador diz ao Observador, uma forma de falar do “passado como um presente contínuo”. O efeito resulta e do lado de cá, do espectador, nunca julgamos estar a ver uma obra de ficção.
Estivemos à conversa com o realizador, via zoom, dias antes de “Prazer, Camaradas!” ser estreado nas salas portuguesas, depois de ter sido apresentado mundialmente no festival de Locarno e de uma antestreia nacional no Doclisboa. Emancipação social e sexual, prazer e muita roupa suja é lavada neste filme. Quase sempre com humor e boa disposição. Uma forma presente e oportuna de olhar para a revolução.
[o trailer de “Prazer Camaradas!”:]
Qual o ponto de partida para “Prazer, Camaradas!”?
Os diários de uma alfabetizadora, a Eduarda Rosa, que entra no filme — é uma das que vai na carrinha pão de forma logo no início. Ela tinha um diário onde dava conta das histórias das mulheres que a acompanhavam na apanha da azeitona, várias relacionadas com o aborto, as primeiras experiências sexuais, a violência dos homens sobre as mulheres. A partir daí interessei-me sobre esse lado menos explorado da revolução e o que é que isto implicava: olhar para a revolução como algo não só político e institucional, não apenas como uma mudança de regime, mas como agente transformador dos comportamentos, da moral sexual, dos costumes. Foi assim que comecei a interessar-me pelas histórias.
A partir desse ponto, como chegou às pessoas?
Encontrei-as a pouco e pouco. Uma ia remetendo para outra, e mais outra… isto foi feito muito à custa de almoços, jantares, de um petisco, da maneira como nos reunimos normalmente em torno da mesa. Para falarmos sobre isto comemos e bebemos.
Como a descobriu a Eduarda?
Ela já estava noutro filme que eu realizei, o “Linha Vermelha”. São materiais que não tinha usado, não tinham cabimento nesse filme.
Ela ficou com os diários? Como é que isso aconteceu?
Sim, sim, o marido, o José Rabaça, tinha uma espécie de três dossiers com todos os documentos da altura, desde atas das assembleias dos trabalhadores, assembleias das cooperativas, até listas de compras, versos, poemas que diziam nos saraus culturais. É um manancial de informação.
É graças a isso que consegue usar linguagem tão específica ao longo do filme?
Sim. Cenas como a da assembleia foram muito inspiradas num livro do Francis Pisani, um francês jornalista do Le Monde que viveu numa cooperativa ali na zona. Nesse livro vem um capítulo, que é bastante importante, que se chama “A Miséria Afectiva”, onde ele fala das relações entre homens e mulheres, dos homens irem às prostitutas naquela altura. E isso para um estrangeiro era um tanto ou quanto estranho. Ele dava conta dessa estranheza, para um estrangeiro, os que vinham ver a revolução, esperavam muitas vezes encontrar uma outra atitude perante aquilo que estava a acontecer a nível político-institucional, aquele desejo que a revolução passasse pelas coisas que se calhar não se falavam na televisão… quer dizer, falava-se, falava-se de tudo na televisão na altura.
Os estrangeiros que entram no filme são os mesmos que estiveram lá?
A maior parte sim. Mais os portugueses exilados. Talvez metade. Existem os portugueses exilados, o João Azevedo, que entretanto morreu, tinha estado em Itália, depois as alemãs também – a que acompanha o nascimento dos cordeiros e a que está a ensinar as mulheres a fazerem ligaduras —, uma delas ficou em Portugal. Foram pessoas que viveram isso.
Falou com algum dos estrangeiros que não esteja no filme?
Falei com um alemão, que também tinha sido médico, numa clínica da Póvoa de Santa Iria. Tinha materiais de época, digitalizou alguns desses materiais e mandou-me. Ainda há aí um universo por explorar de estrangeiros. Foram bastantes, sobretudo alemães, que vieram para esta região do Ribatejo, na altura.
As personagens inglesas falam muito do papel da mulher portuguesa na sociedade. Gostava de saber se isto estava nos diários…
Não, foi improvisado, porque elas estavam a falar das experiências delas na altura e não eram assim tão distintas umas das outras. Quando ela diz que conheceu muitas lésbicas em Inglaterra, que até recusavam a presença de qualquer homem a vários metros de distância. Isso de alguma maneira coincidia com o movimento feminista radical. E o que elas dizem sobre aquelas mulheres ali, outras mulheres já tinham dito. Quando elas dizem que as mulheres eram uma espécie de matriarcas, por um lado tinham muitas vulnerabilidades, porque dependiam dos homens, mas por outro lado tinham uma força incrível, que se via nos trabalhos agrícolas que faziam, e depois as tarefas domésticas, cuidando da família. O que elas dizem acaba por ser semelhante ao que uma outra alemã poderia dizer. E elas não tinham participado em nenhuma cooperativa. Estou a falar dessas duas inglesas, uma delas tinha vindo para Portugal nos anos 80, para uma aldeia isolada e tinha-se apercebido dessas questões logo.




▲ "Acredito que a gestualidade, o vocabulário das pessoas em ação, em dramatização, é muito mais sugestiva do que ter as cabeças falantes a darem depoimentos"
Improvisado por elas?
Sim, depois de muitas conversas que tivemos. Conversámos muito, conversámos sobre o que nos interessava ver e fizemos dois workshops com uma atriz encenadora. E nesses workshops dávamos às pessoas situações para elas dramatizaram e elas fizeram-no. Já estavam conscientes e sensibilizadas para o tipo de filme que iria ser, que se iria basear nesse dispositivo.
Nos diários há alguma referência a isso?
Sim, há excertos dos diários da médica alemã, que tinha na primeira página um autocolante do Otelo Saraiva de Carvalho. Ela trouxe esse diário, pude ver e traduzir do alemão para português. Também me inspirei numa outra alemã que escreveu na cooperativa da Torre Bela, chama Helga Novak. Por um lado, havia um argumento que foi escrito, com muitas páginas, mas que foi destruído, foi posto de lado. Contudo, esse argumento deu-nos bases sólidas, para trabalhar. Fomos dando às pessoas situações baseadas nesse argumento. Havia uma situação de mulheres a lavarem a roupa, a queixarem-se da roupa que tinham para lavar e do branco português, que de tão branco quase cegava. As mulheres estrangeiras quando vinham para Portugal, vinham participar em todos os trabalhos… e era imenso, muito trabalho mesmo. Eram jovens muitas delas, que vinham fazer estágios ou ajudar nos trabalhos, eram assistentes sociais, médicas.
De onde nasce a ideia para a forma do filme?
Acredito que a gestualidade, o vocabulário das pessoas em ação, em dramatização, é muito mais sugestiva do que ter as cabeças falantes a darem depoimentos. A emoção vê-se depois na gestualidade, no corpo, na atitude, na interação. Interessava-me muito vê-las em ação, em interação. Também os queria ver nos locais que foram ocupados e que eram cooperativas. Isso também me interessava bastante, com o aspeto que os locais têm hoje.
Há muito diálogo improvisado. Como se dá início a essas conversas, com estas mulheres?
Depois de conversar bastante e criar alguma cumplicidade. Essa cumplicidade passou por algumas dessas visitas que fiz a Manique do Intendente… é importante o lado de convivência, comer um petisco, beber um copo de vinho com as pessoas, mostrar ao que viemos. Não esperar só que as pessoas se deem a conhecer, mas nós também darmo-nos a conhecer. Acho que essa é uma base sólida para construir algo como isto. Ali o meu esforço foi mais de dar indicações, premissas, e elas contaram, perceberam o que estava em causa. E também perceberam muito bem que lavar a roupa era uma coisa muito de mulheres.
Como assim?
Há uma história engraçada de uma alemã que me contou que um alemão decidiu ir lavar a roupa para um tanque coletivo, naquele tempo. E as mulheres puseram-no fora, porque não queriam lá a presença de um homem. Acabaram por lavar a roupa que ele levou para lá. Preferiram levar a roupa a aceitar a presença de um estranho, homem, que viesse estragar a solidariedade feminina e as conversas. Mesmo que ele não percebesse nada. Passava tudo muito pelo tanque, as conversas, piadas, e o cortar na casaca de alguém. Sendo que ali elas não cortam a casaca de alguém, expõem-se, contam as suas experiências, por vezes de forma muito singela, interessante e sugestiva.
Falou na solidariedade. Mas não haveria outro problema, sugerido na festa, durante o filme, quando se diz a um homem para se afastar da mulher, porque se tocasse nela, ela ficaria marcada e já ninguém a quisesse para casar. Não poderia isso acontecer no tanque? Um homem estar lá e elas terem medo de ficarem marcadas?
Não, um homem ali, perante um grupo de mulheres como aquele nunca se iria armar em macho latino, nunca iria ter esse papel. Mas nos bailes tinha esse papel. E era muito violento. Era uma violência imensa, porque se beijavam alguma mulher, ela ficava marcada. Até há uma personagem que diz “ela está vermelhinha, está ali a amochar, como uma galinha.” Acho que isso é de uma violência extrema. Era como estar a dizer que as mulheres tinham de estar em resistência, sempre absoluta. Roubar um beijo que fosse era uma espécie de carimbo para os homens, um livre-trânsito. Isso trazia problemas às mulheres. Se elas eram percecionadas como já estando com um determinado homem, não tinham direito a casar com outro. Tinha que ser aquele que levavam até ao fim. Isso era muito agressivo.

▲ José Filipe Costa: "Tentei levar essa liberdade para uma ambivalência entre passado e presente. Para que se perceba que o passado é um presente contínuo, é sempre qualquer coisa em construção"
As mulheres falaram à-vontade sobre isso?
Sim, até há aquela cena que um homem rouba um beijo a uma mulher e diz “eu vou casar com ela, portanto posso dar um beijo. E temos de saber como é que é.” Subentende-se que se não fosse casar com ela e lhe desse um beijo, ela ficaria marcada. Uma das pessoas que eu queria que tivesse entrado no filme, mas que por motivos de saúde não conseguiu, dizia que estes bailes pareciam um curro – que é onde se encontram os animais. Ele queria dizer que a animalidade era tão grande que os homens tinham de mostrar o seu gosto pelas mulheres, tinham de mostrar uma ereção, caso contrário não seriam válidos. Mas por outro lado, não deveria haver aproximação, elas não deveriam deixar que eles se aproximassem. Era um paradoxo, uma dualidade vivida de uma maneira muito animal. Era ali que se jogava tudo. E as mulheres, as que exerciam uma vigilância agressiva, eram as próprias mães, que estavam sentadas no baile. Há uma personagem que vai dizendo “olha que a tua mãe está a ver”, “cuidado, tenho medo que a minha mãe veja”. Os estrangeiros vinham ver como a vida acontecia, antes e depois do 25 de Abril. Quando viam aquilo, eram como antropólogos a tomar notas.
Ao falarem disto, as mulheres tinham uma noção dessa violência?
Já têm essa noção, sim. E há um lado de libertação, liberdade no falar e expor-se, que eu acho que é bastante significativa. E tentei levar essa liberdade para uma ambivalência entre passado e presente. Para que se perceba que o passado é um presente contínuo, é sempre qualquer coisa em construção. Que está sempre a mudar — ou não — conforme as nossas palavras, memórias.