Há já algum tempo, uma paróquia do Patriarcado de Lisboa teve a louvável ideia de promover um ciclo de sessões de esclarecimento doutrinal, que tinha por nome ‘Teologia para todos’, mas que alguém, não sei se por lapso, má-intenção ou bom-humor, dizia ser ‘Teologia para totós’!

Quem assim baptizou aquela iniciativa paroquial esqueceu uma evidência: não há totós em questões doutrinais, morais ou litúrgicas. De facto, o mundo em geral, e o nosso país em particular, estão pejados de iluminados teólogos, eloquentes exegetas, eruditos moralistas e sapientíssimos liturgistas. Basta sair um Motu proprio do Papa Francisco, para aparecerem essas multidões de ignotos doutores da Igreja que, com surpreendente à-vontade, comentam, criticam e até censuram o Santo Padre, com a mesma sem-cerimónia com que, numa tasca, se fala do último jogo de futebol.

Ante uma tal plêiade de improvisados teólogos, não o sendo eu, nem exegeta, nem moralista ou liturgista, é preciso grande atrevimento para comentar a Traditionis Custodes, o Motu proprio que regula o uso da chamada forma extraordinária do rito latino. Faço-o, contudo, a título meramente pessoal, que é o registo com que assino todas as minhas intervenções, mas não sem antes fazer uma advertência prévia, que é já do conhecimento dos meus leitores habituais.

Pela enésima vez o digo e repito: estou, como sempre estive e, com a graça de Deus, sempre estarei, com o Papa, seja ele Francisco, Bento ou João Paulo. Com certeza que, nas matérias opináveis – como pode ser, por exemplo, a fundamentação teológica, ou a oportunidade desta instrução pontifícia – reservo-me o direito de exprimir também, com total liberdade, o meu pensamento, mas sem nunca pôr em causa a fidelidade à Igreja e ao seu magistério, nem ao Santo Padre. É penoso ver eclesiásticos, até mesmo bispos, a criticar o Papa e as suas intervenções, por mais razões que eventualmente lhes assistam. Também não vou agora contrapor, numa espécie de oposição dialéctica, o Papa Francisco ao seu antecessor, cujas teses sobre esta questão bem merecem uma reflexão autónoma.

Dito isto, vale a pena responder tanto aos que desprezam a questão litúrgica, que entendem de menor relevância, como aos que, de algum modo, idolatrizam os ritos, ignorando o seu carácter instrumental.

A lei da oração é a lei da fé e, por isso, é da máxima importância o rigor litúrgico: não se trata de uma mera formalidade, mas da essência da própria identidade cristã, no modo como se expressa, vive e transmite. É por isso que compete à suprema autoridade eclesial aprovar os ritos em uso na Igreja católica, tanto latina como oriental.

O que a um leigo na matéria, já não digamos um totó genuíno, pode parecer irrelevante, tem, por vezes, extraordinária importância teológica. Por exemplo, não é a mesma coisa afirmar que Jesus Cristo é da mesma natureza que o Pai, como se diz nalgumas más traduções do Credo, ou que lhe é consubstancial, como consta na versão oficial. Nessas traduções não se declara, explicitamente, que o Pai e o Filho são, com o Espírito Santo, o mesmo e único Deus, como se proclama, pelo uso do termo ‘consubstancial’, na versão oficial do Credo niceno-constantinopolitano.

Também não se pense que são de pouca importância as manifestações exteriores de reverência e piedade, como as prostrações, genuflexões, inclinações, etc. Jesus Cristo, quando recebido na casa do fariseu, censurou-lhe as suas repetidas faltas de delicadeza: “não me deste água para os pés (…); não me deste o ósculo (…); não ungiste a minha cabeça com bálsamo (…)” (Lc 7, 44-46).

No extremo oposto, estão os que esquecem que a liturgia não é um fim em si mesma, mas um meio e que, como tal, está sujeita ao devir histórico. Jesus Cristo celebrou a última Ceia em aramaico, os primeiros cristãos celebravam em grego – de que restam ainda alguns vestígios na liturgia romana, como a invocação Kyrie eleison – e, depois, quando a Cristandade se expandiu por todo o império romano, o latim passou a ser a língua oficial da Igreja, porque era também o idioma comum a todos os povos cristãos.

Querer diabolizar, ou dogmatizar, o uso do latim – que o Concílio Vaticano II recomenda: não em vão é em latim a versão oficial de todos os documentos conciliares: Lumen gentium, Gaudium et spes, etc. – é tão absurdo como seria disparatado pensar que o Missal dito de São Pio V, que este Papa não inventou mas apenas reelaborou, ou as medidas agora adoptadas por Francisco, são definitivas e irreformáveis. Da mesma forma como aquele santo pontífice romano introduziu uma reforma litúrgica, que renovou a tradição eclesial, também o actual o pode fazer e, depois dele, outro Papa, mantendo o que é essencial e irreformável, mas alterando o que é acidental e, portanto, histórico.

Não duvido da piedade e recta intenção de alguns dos defensores da dita forma extraordinária do rito romano, mas pode haver algum exagero na sua intolerância, talvez por um excessivo apego ao que é acidental, em detrimento do essencial, que é, afinal, a unidade na fé e a comunhão eclesial. Não compete ao leigo, nem ao sacerdote, determinar como deve ser o culto divino, porque Deus quer ser celebrado da forma por ele estabelecida pelo organismo por ele criado para esse fim: a suprema autoridade eclesial. Querer amar a Deus, à margem da Igreja, é preferir a própria vontade à daquele que se diz pretender honrar, como quem paradoxalmente dá, como presente de anos, o que quer para si, mas não é do agrado do aniversariante.

Durante muitos séculos, foi habitual o uso do termo Santa Madre Igreja. Esta expressão, agora em desuso, tinha a vantagem de apresentar a Igreja como mãe. Nunca tratei a minha mãe por tu, porque assim fui ensinado, e não me sentiria à-vontade se o fizesse. Se o Chefe de Estado, o Presidente da Câmara Municipal, ou o Chefe dos Bombeiros me exigissem que tratasse por tu a minha mãe, desobedeceria a essa ordem, sem nenhum problema de consciência. Mas, se fosse a própria que me pedisse que a passasse a tratar dessa forma, com certeza que o faria sem hesitar, não obstante a dificuldade que teria em alterar um tratamento a que estou tão habituado e que, de facto, me parece ser o mais respeitoso e digno.

Moral da história: o meu amor filial exige que trate os meus pais como eles desejam ser por mim tratados e não de acordo com as minhas preferências. Quer isto dizer que, se por uma absurda hipótese, algum deles me pedisse que o matasse, ou adorasse, também o deveria fazer?! Claro que não, porque esses actos são intrinsecamente contrários à fé, que se sobrepõe ao afecto e respeito que devo, por mandamento divino, aos meus pais. Mas, se a forma de os cumprimentar que for do seu agrado, for compatível com a fé, como é o tratamento na segunda pessoa do singular, essa seria também, sem nenhuma hesitação, a minha vontade.

Para nós, que queremos ser bons filhos da Santa Madre Igreja, a obediência e amor ao Santo Padre resolve, por assim dizer, o problema litúrgico. Mas acredito que o mesmo já não se possa dizer em relação àqueles que, decerto com as melhores intenções, preferem as suas opiniões e gostos à união com o Papa, como aquele devoto que dizia: ‘Eu cá faço sempre a vontade de Deus, quer ele queira, quer não!’