Sérgio Sant’Anna, um dos maiores escritores brasileiros contemporâneos cuja obra é marcada por uma linguagem transgressiva e experimental, morreu este domingo no Rio de Janeiro, informou a irmã, a também escritora Sonia Sant’Anna. Um dos dois filhos do autor, André Sant’Anna, adiantou que a causa da morte foi uma paragem cardíaca na madrugada de sábado para domingo, de acordo com o jornal Folha de S. Paulo.
Internado com sintomas de covid-19 desde o dia 3 no Hospital Quinta d’Or, no Rio de Janeiro, o autor estava ligado a um ventilador. Tinha 78 anos.
Sonia Sant’Anna publicou no domingo ao fim da manhã (hora de Lisboa) uma curta frase com a notícia: “Meus queridos, o Sérgio se foi. Depois a gente se fala mais.” Mais tarde, acrescentou um depoimento emocionado. Dezenas de comentários, com pêsames, foram deixados por amigos e conhecidos.
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Nos últimos dias, Sonia Sant’Anna tinha publicado no Facebook várias atualizações sobre o estado de saúde do irmão. No sábado, resgistara: “Situação pulmonar estável. Os rins continuam não respondendo bem, e vai ser feita a diálise. Aos poucos ele vai acordando, mas ainda sem recuperar de todo a consciência.”
“Tenho uma tendência à preguiça”
Sérgio Sant’Anna é descrito como um dos principais ficcionistas da língua portuguesa das últimas décadas, um “transgressor contumaz” que testou os limites da prosa, dos géneros literários e da própria ideia de literatura, como assinala a editora brasileira Companhia das Letras, casa do autor desde 1989. As suas obras “romperam tradições e derrubaram barreiras entre alta e baixa cultura, entre popular e erudito, numa linguagem descarnada tão reconhecível quanto escorregadia, que influenciou inúmeras gerações de escritores”, classifica a editora.
Sérgio Sant’Anna assinou vinte livros, incluindo romance e teatro, mas destacou-se como contista e neste género se consagrou. “Me dou melhor com textos curtos, tenho uma tendência à concisão. Confesso que também tenho uma tendência à preguiça”, disse em 2011. “A distinção entre conto, novela e romance me parece, num certo sentido, até singela: é questão de tamanho. Mas estou cansado de escrever novelas, cujo tamanho permite um maior desenvolvimento do conteúdo, e ver as pessoas chamarem essas novelas de contos”, acrescentou mais tarde.
São dele obras seminais da literatura brasileira como O Concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, dada à estampa no início da década de 80, ou ainda O Homem-Mulher (2014), ambas coletâneas de contos. As suas personagens “são homens e mulheres comuns, de classe média e meia-idade, às voltas com os problemas do quotidiano e pequenas tragédias pessoais, e que parecem encontrar no sexo uma válvula de escape para suas frustrações”, resumiu o jornal O Globo, a propósito de O Homem-Mulher.
Sobre o método de escrita e as passagens de cariz pornográfico nos textos de O Homem-Mulher, Sérgio Sant’Anna explicou em 2014: “Não penso nem quero ser um autor pornográfico, mas a pornografia entra na medida em que desejo narrar bem explicitamente certas passagens do meu texto.” E notou ainda: “Sou mais espontâneo do que talvez pareça. A cada texto, chego a um final que tanto pode ser uma explosão como uma abertura. Não desenvolvi nenhum princípio teórico sobre o género conto. Aliás, a cada narrativa me parece que estou optando por soluções que devem ser aquelas que o próprio texto pede. Eu só sei dizer o que distingue um bom conto no momento em que leio um bom conto.”
A obra do carioca chegou tardiamente a Portugal. A partir dos anos 2000, passou a ser publicada pelas editoras Cotovia e Tinta da China: O Voo da Madrugada (2004), O Monstro: Três Histórias de Amor (2005), Um Crime Delicado: Romance (2008) e mais recentemente O Pássaro da Perfeição : Contos Escolhidos (2019).
“A minha vida foi bem vivida”
Com cinco décadas de vida literária assinaladas em setembro do ano passado, tendo como referência o livro de 1969 Sobrevivente — célebre edição de autor que Sérgio Sant’Anna pagou com dinheiro emprestado pelo pai —, venceu por quatro vezes o Prémio Jabuti, um dos mais prestigiados galardões da literatura brasileira, e também o Prémio Portugal Telecom (atual Prémio Oceanos), entre outros.
No balanço de meio século dedicado à escrita, declarou à Folha de S. Paulo: “Há certa melancolia com a passagem do tempo. Mas seria muito pior se eu não tivesse feito nada. Minha vida foi bem vivida.”
Hoje que são comemorados os 50 anos de carreira de Sérgio Andrade Sant'Anna, lembramos esse curta que fizemos em que o autor comenta seu processo de escrita e seu mais recente livro de inéditos, “Anjo noturno”. A direção é de Fabio Seixohttps://t.co/ZlewPYCqcA
— Revista Literária Pernambuco (@pernambucorev) September 28, 2019
Nascido a 30 de outubro de 1941, no Rio de Janeiro, Sérgio Andrade Sant’Anna e Silva fez carreira como funcionário público, uma tradição entre autores brasileiros, registou a Folha de S. Paulo neste domingo. Além de jurista no Tribunal do Trabalho, deu aulas na Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro entre 1977 e 1990, momento a partir do qual se dedicou apenas à literatura.
Cresceu em Belo Horizonte, formou-se em direito na Universidade Federal de Minas Gerais em 1966 e no ano seguinte chega a Paris com uma bolsa de estudo do Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Paris, assistindo de perto à revolta dos estudantes de Maio de 68. Na mesma época viajou até à então Checoslováquia e testemunhou a Primavera de Praga. No início da década de 1970, após o livro de estreia, participou no International Writing Program, da Universidade de Iowa, EUA.
O segundo livro de contos, Notas de Manfredo Rangel, Repórter, saiu em 1973. O primeiro romance, Confissões de Ralfo: Uma Autobiografia Imaginária, data de 1975. Voltou ao Rio de Janeiro em 1977.
“É tentador dizer que o principal legado de Sérgio Sant’Anna para a literatura brasileira é a liberdade e a inventividade formal, mas a verdade é que sua contribuição é bem maior do que isso”, escreveu este domingo o escritor brasileiro Gustavo Pacheco. Ele é também um mestre da prosa límpida e direta, especialmente quando nos mostra como é possível ser lírico sem abusar dos adjetivos e outros penduricalhos
Fumador compulsivo até quase aos 70 anos, tinha nos últimos tempos por hábito adormecer por volta das três da manhã enquanto via em casa documentários televisivos sobre cinema e música. Continuou a escrever até há poucos dias. A Folha de S. Paulo publicou-lhe um conto inédito a 26 de abril último, Das Memórias de uma Trave de Futebol em 1955, e a revista Época editou a 1 de maio aquele que é agora o último conto do escritor ainda em vida: A Dama de Branco.