Demorou quatro anos a chegar aos Jogos Olímpicos. Tinha 18, surpreendeu o mundo. Subiu e desceu na corda bamba da vida, qual montanha russa imprevisível. Aprendeu umas coisas, ganhou moral, queria mais. Caiu. Era obsessão. Afinal, não dava, não tem o que é preciso. Bom, agora é que é. Não foi. Se calhar, Telma treme. Mais uma moedinha, mais uma voltinha. Ui, uma lesão. Operação. É para esquecer. Tem 30 anos, vai estar mais tempo a recuperar do que a treinar. Não dá. Deu. Já ganhou. Oops, a mongol enganou-a: repescagem. Terá capacidade para mudar o chip? Deve ser complicado. Se calhar dá, acabou de eliminar a número 1 da Europa. Os olhos já se arregalavam. Será? Olha, está à rasca do ombro. Está cansada. Hmm. A outra é rija. A Telma já está a abrir os braços. Olha, levou uma solha. Vamos ver, vamos ver…
Telma é garota do bairro, fazia asneiras e pisava o risco. Ganhou carapaça. Morde o lábio e range os dentes, se for preciso, embora ouvisse então música pop e lamechas como Backstreet Boys. Tentou o atletismo, mas fartou-se de andar às voltas dos prédios cansados, promessas de esqueletos por abandonar. Não era para ela. Tentou o futebol, mas cedo pendurou as botas porque nunca, nunca, era chamada pelo treinador. Estava farta. Quando brincava com os amigos, seja em que desporto fosse, queriam todos vestir a pele do herói. A glória é irresistível, é gasolina no sangue, que ferve por mais e mais. Um dia meteu na cabeça que ia afundar no cesto de basquetebol ao pé de casa. E arranjou maneira, apesar de a seguir ter-se magoado a sério. Todos querem ser Michael Jordans, certo? É isto que Telma Monteiro lembra no seu livro “Na vida com garra”. Chegar um pouco mais longe, sentir a brisa do céu.
Numa noite de insónias, a irmã Ana sentiu o suspiro e a agitação e perguntou o que se passava. Ouviu a pequena Telma e convenceu-a a ir para o judo com ela. E ela foi. Tinha 14 anos.
“Eu vim para ficar!” Este grito, após a vitória contra Automne Pavia, foi o ponto de viragem. Para ela, para os portugueses, para os jornalistas e até para os brasileiros na Arena Carioca 2, que demoraram a dar por ela. Telma berrou, com raiva, com o dedo rijo, capaz de furar o tatami. Acabava de eliminar a número 1 da Europa.
O torneio (-57 quilos) de Telma começou com uma vitória contra Darcina Manuel, depois de a portuguesa ter beneficiado de uma folga na primeira ronda (isenta). Começou forte, com dois yukos no primeiro minuto
O torneio (-57 quilos) de Telma começou com uma vitória contra Darcina Manuel, depois de a portuguesa ter beneficiado de uma folga na primeira ronda (isenta). Começou forte, com dois yukos no primeiro minuto. Cerrou os punhos quando acabou. Estava sólida, convicta. O totó no cabelo, uma imagem de marca que preservou conscientemente, teve de ser arranjado mais do que uma vez. O judo da televisão parece mais amigo. Ao vivo ouve-se, sente-se o peso das chapadas que prometiam uma pega. O ritmo é outro, parece estar em fast forward. As marcas na cara vão surgindo. Não há milagres. É duro.
Os televisores na tribuna de imprensa permitem ver mais de perto a ação. Os olhos falam. Telma queria a redenção da menina de 18 anos, de Atenas 2004, que não soube gerir o fracasso. Não soube cair, não soube alterar o chip. Ou tudo ou nada. Ou ouro ou casa. Esse é, aliás, um dos capítulos do seu livro — “Saber cair”. É essa a primeira lição do judo. Defender e evitar quedas que esbanjam pontos para o outro lado ou, na pior das hipóteses, ippons, o KO do judo (projeção e queda de costas). A sedução da ideia é simples, porque é complexa: isto é literal e metafórico. Pode significar cair e levantar.

Telma Monteiro vs. Sumiya Dorjsuren (Photo credit should read TOSHIFUMI KITAMURA/AFP/Getty Images)
Seguiram-se os quartos-de-final. A rival era a número 1 do mundo, Sumiya Dorjsuren, que tem um olhar avassalador. É da Mongólia, tem 25 anos e em 2012, em Londres, não foi além do 17º lugar. Mas as preocupações dos mais entendidos no assunto, quando a viram colocar-se na possível caminhada de Telma, impunha respeito só por si só. O combate arrastou-se. Havia muito respeito, algumas investidas, mas ninguém dominava. Telma não vergava. Seguiu-se para o “ponto de ouro”. Qualquer ponto ou, em sentido contrário, qualquer penalização pode resolver o duelo. E foi isso que aconteceu: Telma foi penalizada por “falta de combatividade”. Aqueles segundos de impasse, sem se perceber muito bem o que aconteceu, foram angustiantes. Telma estava de pé. Não foi dominada. Perdeu daquela forma. Ingrato. Saberia cair, 12 anos depois da primeira desilusão?
Durante a hora de almoço as conversas multiplicavam-se. A desconfiança também, que lá mudava a cara a cada rabanada de vento, que tem abanado o Rio de Janeiro. Tem de mudar o chip, esquecer o ouro. Vai lutar na repescagem para chegar ao bronze. Portugal só tem uma medalha de bronze em judo, homem. É histórico. Ela já não tem 18 anos. Depois lá voltam aqueles pensamentos que minam qualquer mente onde o sol brilha a toda a hora: ela foi operada a meio ano dos JO. Bom, o café estava bom (tem sido um guerra nesta capítulo, uma espécie de ippon mental). Vamos a isto.
Voltámos à Arena Carioca 2 com a cabeça arrumada. Às vezes sente-se a tensão dos atletas. Passa a fazer parte das entranhas de quem escreve. O ambiente no pavilhão ia aliviando a coisa, porque aquilo virava do avesso quando Rafaela Silva combatia ou puxavam pelo Brasil. “Pega ela, Rafa!”, ouviu-se tanta e tanta vez. A brasileira ganharia a medalha de ouro, precisamente contra a atleta mongol que eliminou Telma Monteiro.
A repescagem era contra a francesa Automne Pavia. Voltou a velocidade. Telma tenta muitas pegas e enfiar-se pelas pernas abaixo das rivais, para tentar a projeção. Muitas vezes vê o sinal vermelho, porque aquela gente tem muita força e técnica. Mas a portuguesa tentava. E tentava. Até que, quando o relógio namorava o primeiro dos quatro minutos, Telma faz um ippon à francesa. O tal “Eu vim para ficar!” foi arrepiante, acendeu as bancadas, ligou-lhe a alma. O compromisso, a garra do costume, tinham ganho agora luz. Seria até ao fim — “Eu disse à minha equipa: se passar a francesa, levo a medalha para casa”, diria no fim.
"Eu vim para ficar!" Telma Monteiro for #Bronze #POR pic.twitter.com/69KgnfSuz9
— Aggie (@SadLunaire) August 8, 2016
Aconteça o que acontecer, será a melhor prestação de sempre da judoca lisboeta. Segue-se a romena Corina Caprioriu, que tem a mesma idade da portuguesa (30). Era mais um osso duro de roer: medalha de prata nos Jogos Olímpicos de Londres. O silêncio ganhou terreno no pavilhão. Aqui e ali ouve-se um “Vamos, Telma!”, com os dois sotaques da língua portuguesa de mão dada. Os brasileiros estavam do lado de Portugal. Telma era o país irmão. “Portugal, Portugal!!!”, ouve-se desta vez, já durante o combate, por fugazes segundos.
Muito cedo Telma assinou um yuko, que lhe dava a liderança. Depois foi uma troca de galhardetes: pegas falhadas, os pés a chocar, tentativas de ataque, resistência. Telma mais tarde admitira que a romena queria apanhá-la em falso, aproveitar um erro. O desconforto no ombro esquerdo começou a gritar. A face da judoca não enganava, era dor, era lamento. Limitava. Ajeitou o cabelo e o quimono. Voltou à bulha. A romena bufa, está irritada. Telma já ia gerindo, evitando grandes aventuras. Controlou. Mais tarde, já medalhada, daria toques de Fernando Santos: “não vim aqui para lutar bonito, vim para ganhar”.
Tic-tac, tic-tac! Já está: Telma é medalha de bronze nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro. É histórico, senhoras e senhores. O corpo dá sinais contrários à ética jornalística. A pele está como a canja: de galinha. O bom feeling engole aquele pavilhão, que já puxa em uníssono pela portuguesa. Há um alívio, o alívio de não tremermos apenas com o futebol. Aqui e agora, acabou-se de ver uma grande lição de vida. O desporto ensina tudo: a cair, a respeitar o outro, a perceber que há quem seja melhor. E a ganhar. É o horizonte.

Já está! É medalha de bronze, Telma (Photo by David Ramos/Getty Images)
Telma abria os braços, sorria. Abraçou o treinador com a força de 1000 mulheres. E depois, a lembrar o Michael Jordan que era na sua infância, saltou a vedação para abraçar os seus. Talvez tenha ganho umas medalhas, daquelas negras, que choram na pele amassada. Mas não interessa. A própria diria algo semelhante na zona mista: “Acho que lixei o ombro. Se fosse para casa de cadeira de rodas com a medalha era indiferente…”
Ainda com emoções de bronze, foi possível navegar na mente de Telma Monteiro, com algumas palavras, recados para a própria, para a menina de 18 anos, e ainda mensagens inspiradoras para quem a segue e que cai todos os dias como o comum dos mortais.

Telma Monteiro com Sumiya Dorjsuren (prata), Rafaela Silva (ouro) e a amiga Kaori Matsumoto (bronze) – David Ramos/Getty Images)
“Provei que vale a pena não desistir dos nossos sonhos”, começou por dizer. “Não interessa a idade, não interessa o tempo que temos de esperar, o mais importante é não desistir. Persigo esta medalha há 12 anos. Costuma dizer-se que à terceira é de vez. À terceira é de vez, à quarta é medalha…”, sorriu, roubando outros tantos sorrisos a quem a rodeava num abraço invisível.
Mostrou que, afinal, sabia gerir e mudar o chip, que não estava cega pelo ouro, que havia mais por conquistar. “As coisas acontecem como tem de ser. O mais importante para mim é ter sabido reagir. Há oito anos, em Pequim, não tive essa maturidade: perdi na repescagem, porque estava obcecada com a medalha de ouro”, reconhece. “Hoje não, hoje sabia que o mais importante era fazer História pelo meu país.”
E a História foi feita.