É como nas trincheiras, em situação de guerra. Há de tudo: os que desistem e fogem, optando por não entrar na luta; os que se atiram de cabeça e vão a toda a velocidade mas esbarram no inimigo; e depois há os que ficam pacientemente na vala escavada no chão, a tentar atingir o inimigo de forma tática e inteligente. Demorada, também. “Os primeiros são o anterior governo do PSD/CDS, os segundos são a Grécia, e os outros somos nós”. O inimigo, claro, são as instituições europeias com as suas regras e imposições.
A metáfora ouve-se nos corredores do PCP, meio em jeito de brincadeira, meio em jeito de explicação para o que se está a passar com o partido desde há seis meses para cá. É que foi a primeira vez na história que o partido comunista português aceitou sair do casulo, juntar forças e dar cobro a um governo do PS. Seis meses depois dessa viragem, há dores no partido?
Que as há, há, mas pouco se veem. E esse pode ser um truque antigo. Quando no dia 8 de novembro o Comité Central se reunia na Soeiro Pereira Gomes para analisar a “posição conjunta do PS e do PCP”, depois de intensas negociações, especulações e expectativas, Jerónimo de Sousa interrompia a reunião para ir à sala de imprensa à hora marcada – nem mais um minuto, nem menos um minuto – comunicar a decisão histórica: havia “unanimidade” no partido para assinar o acordo com o PS que permitiria, primeiro, derrubar o Governo de Passos Coelho e Paulo Portas e, depois, dar posse a um novo Governo de António Costa. Mas era uma “unanimidade informal”, dizia Jerónimo, para ser tão rigoroso como tinha sido pontual.
A expressão fez levantar algumas antenas. Tinham passado oito horas desde que a reunião entre os 148 membros do órgão máximo do partido tinha começado e o melhor que tinham conseguido era uma “unanimidade informal” para “confirmar e autorizar” o acordo com o PS? Numa altura em que todos os olhos e ouvidos incrédulos estavam postos nos partidos da esquerda que nunca se tinham aliado a qualquer Governo, todo o cuidado era pouco. Acontece que a reunião tinha começado às 11h da manhã, e, às 19h, hora da conferência de imprensa, ainda não tinha sido feita a votação, de braço no ar como é costume no partido para confirmar a unanimidade. Essa viria no fim, pelas 22h, e, sim, não mostrava nenhum voto contra nem tão pouco nenhuma abstenção. Havia luz verde no partido vermelho.
O que acontece no Comité Central fica no Comité Central, mas hoje assume-se que a “discussão intensa” que houve em torno do tema foi feita “na base da apreciação de contributos individuais e, nessa lógica, nunca deixou de ser uma apreciação assente em contributos diferenciados”, diz ao Observador o líder parlamentar do PCP, João Oliveira, acrescentando que mesmo havendo opiniões diferentes, a discussão foi “pacífica e com grande espírito de coesão e unidade dentro do partido e do caminho que o PCP estava a escolher trilhar”.
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PS, CDU e PAN são os únicos partidos que sobem no último barómetro SIC/Expresso da Eurosondagem, relativo a maio.
Popularidade de Jerónimo de Sousa duplica, chegando pela primeira vez aos 11,8%, não deixando de ser, contudo, o líder menos apreciado.
Talvez se possa falar de uma espécie de pacificação, embora o clima aparentemente nunca tenha sido de guerra interna. “É inevitável que ainda haja céticos desta solução, mas até onde eu escuto não se têm feito ouvir”, diz ao Observador Carlos Brito, um dos ex-dirigentes comunistas que pertenceu ao núcleo duro de Álvaro Cunhal e grande defensor do diálogo à esquerda. “Ouvia-se no início, mas agora muito menos, o que é um sinal”. Também o ex-deputado comunista Honório Novo admite ao Observador que “há certamente pessoas que não estão inteiramente confortáveis com esta situação. Mas é positivo que assim seja – e a grande maioria do partido está”, diz.
É um mundo novo para o PCP, mas foi efetivamente Jerónimo de Sousa quem primeiro apareceu à frente das câmaras, na noite eleitoral, a abrir portas à possibilidade matemática de a esquerda se juntar para derrubar a direita — e João Oliveira recorda-o ao Observador como uma reclamação de louros dentro da “geringonça”. Mas engane-se quem pense que foi uma ideia que surgiu de repente na cabeça do secretário-geral comunista. “Não veio assim da cabeça dele, antes disso já tinha havido uma grande reflexão coletiva”, diz Honório Novo, explicando como o partido preparou em conjunto este passo. “O que houve depois foi o respeito pelo caminho que estava a ser definido no partido”.
A tal unanimidade. Que é como quem diz: mesmo os mais céticos não levantaram a voz.
O segredo da geringonça: transparência e discrição
No PCP, como na política, o que parece é. E as palavras querem dizer precisamente o que dizem, não há leituras subliminares. Tal como a “unanimidade” era “informal” porque o acordo ainda não tinha sido formalmente posto a votos à hora da declaração, toda a atitude posterior do PCP face ao acordo com o PS se veio a reger por esse princípio. Só o que está escrito vale, e vale apenas na base em que está escrito.
Ou seja, a geringonça move-se com as peças que tem disponíveis, com o que está escrito no acordo, e não com as peças que ficaram de fora. Mas move-se, ainda assim. Recusando definir linhas vermelhas, o líder da bancada comunista prefere continuar a defender que há apoio “em todas as medidas que sejam positivas para os trabalhadores e o povo português” e não há apoio em “todas as que vão contra isto”.
Parece simples. “De forma clara e transparente há matérias onde há separação de águas, e isso não é esquecido nem nos gabinetes nem na opinião pública: há transparência, todos sabem o que une e o que separa o PCP do PS”, sustenta Honório Novo. Refere-se em particular aos três grandes eixos que separam os dois partidos: a pertença à União Europeia e o vínculo aos tratados transnacionais, a nacionalização da banca e a renegociação da dívida.
As diferenças sempre foram conhecidas. E foi também por isso, e não por acaso, que o PCP bateu o pé para não aparecer ao lado de António Costa, Catarina Martins e Heloísa Apolónia na fotografia. Foi, e ainda é, tudo gerido com pinças. João Oliveira fala em “discrição” por oposição à “encenação e espetacularização” em que a política se pautava antes da “geringonça”. “A falta de encenação e espetáculo acabou por ser inversamente proporcional ao bom resultado alcançado”, diz. E esse pode ser um dos segredos do sucesso.
A verdade é que o dia da assinatura oficial dos acordos bilaterais foi tão discreto quanto secreto – à vez, Jerónimo, Catarina e Heloísa entraram numa sala recôndita do edifício novo do Parlamento, sem anúncios prévios à imprensa, para assinar o papel. Só quatro fotografias, separadas, registaram o momento. Sobre as reuniões que se seguiram, e que decorrem há seis meses numa base regular, também pouco ou nada se sabe. Sem foto de grupo, teve de ser o próprio PS a fazer uma montagem para agora, meio ano depois, assinalar o momento.

Montagem foi divulgada esta semana no site do PS para sinalizar os seis meses do acordo
Depois da discrição, a transparência e a clareza de posições são vistas como outro dos segredos do negócio. Porque na política como na vida, é tudo uma questão de expectativas. “Se o ponto de partida for aquilo que o PCP acha que deve ser feito, então ainda estamos muito longe de alcançar tudo o que queremos fazer. Se a perspetiva for a das possibilidades que sabemos que a nova composição da Assembleia da República permite, então há muita coisa concretizada e muitas respostas que estão a ser dadas“, diz João Oliveira.
Desde que há seis meses se fechou o acordo, o Governo com o apoio dos partidos da esquerda tem procurado reverter medidas vindas do Executivo anterior e aprovar as questões sociais fraturantes que não contavam com os votos da direita. Agora, o PCP segue caminho com a proposta da reposição das freguesias entretanto extintas, ou da reposição dos tribunais fechados no âmbito do mapa judiciário reformulado pela ex-ministra Paula Teixeira da Cruz.
E muito falta fazer. O aumento real do valor das pensões, as reformas sem penalizações ao fim de 40 anos de trabalho, ou o aumento do apoio aos pequenos e médios empresários são exemplos de propostas apresentadas pelo PCP e chumbadas pelo PS, que ainda lhes estão entaladas.
Um passo de cada vez. Como nas trincheiras.
E se…? E quando…? Um orçamento de cada vez
Há uma coisa que no PCP todos lembram sistematicamente: a posição conjunta assinada entre os dois partidos é para um “apoio parlamentar” e não para um “apoio de Governo”. E “isso faz toda a diferença”, explica ao Observador o ex-deputado Honório Novo, que saiu do Parlamento em 2013 antes de ver a geopolítica interna mudar radicalmente. É o que permite ao PCP escudar-se quando o Governo aprova matérias relacionadas com acordos europeus, ou decorrentes do compromisso do tratado orçamental: se não forem documentos da Assembleia da República, então o PCP não tem de dar o sim. Ao Governo o que é do Governo, à Assembleia o que é da Assembleia.
Foi o que aconteceu recentemente com o Programa de Estabilidade e o Plano Nacional de Reformas, exigidos pela Comissão Europeia e onde aparece vertida a estratégia de crescimento e as metas do Governo para os próximos quatro anos. Não eram documentos que tivessem de ser aprovados na Assembleia da República, tinham apenas de ser apresentados e discutidos, para depois seguirem caminho até Bruxelas. Foi o que valeu. Porque o PCP não aprovaria um documento “que é um instrumento da UE usado para condicionar os países”. Jerónimo disse-o publicamente, mas só depois de ter a garantia de que o documento não ia a votos. Agora, com mais distância ainda, João Oliveira diz ao Observador que, se isso tivesse acontecido, “então o assunto teria de ter sido discutido de outra forma”. “[O PE e o PNR] são documentos da responsabilidade do Governo, se fossem leis da Assembleia teriam de estar submetidos a outro tipo de escrutínio e de decisão, como acontece com o Orçamento do Estado”. Mas se fosse a votos “não era o fim do mundo”, brinca. Nem do Governo?
Certo é que o Programa de Estabilidade (PE) dita as regras e os números com os quais o Governo socialista se compromete para os próximos anos e, mesmo o PCP e o BE não concordando com ele, o PS terá de o respeitar. Esse é o ponto que “preocupa” os comunistas. Mas, lá está, escudam-se na única coisa à qual admitem vincular-se: o Orçamento do Estado. “Vamos ver qual vai ser a tradução do PE no Orçamento do Estado, e vamos ver em que medida essa tradução não entra em conflito com o acordo“, diz Honório Novo, passando a bola imediatamente. “Esse é um problema que o PS vai ter de gerir”.
Três partidos, uma Europa. E a corda vai esticando…
O jogo de forças é facilmente associado à imagem de uma corda a ser puxada para cada lado. Para a esquerda pelo PCP e BE, e para a direita pela Europa. Com o PS no meio. Para o ex-dirigente comunista Carlos Brito o truque é precisamente esse: “Cabe a cada um puxar mais, para conseguir mais, mas sempre sem prejudicar os acordos estabelecidos”, diz.
O PCP não tem largado as suas bandeiras e organizou nos últimos meses um ciclo de conferências sobre os temas quentes que o afastam do PS: “controlo público da banca”, “renegociação da dívida pública” e “libertação da submissão ao euro”. O objetivo é dar continuidade ao processo de discussão interna que culminará no congresso de dezembro — onde permanece no segredo dos deuses se Jerónimo de Sousa se recandidata ou não. “As questões que os separam, do euro à banca, têm sido bem colocadas, e estão a ser postas em cima da mesa mas sem a intenção de rutura unilateral”, continua Carlos Brito. Voltamos às trincheiras e à diferença face à postura do governo grego de Alexis Tsipras, que tentou romper com tudo de uma vez e acabou às mãos das regras da Europa.
Quando, ou se, a corda esticar muito para o outro lado, Honório Novo, que se diz um “otimista”, acha que o PS “vai pender para o acordo que firmou no Parlamento”. “O PCP, todos o reconhecem, nunca violou nenhum acordo, espero que com o PS também seja assim”. O problema é quando há dois acordos, e um se torna incompatível com o outro. João Oliveira recusa-se a antecipar cenários, mas não salta logo fora: “É preferível não anteciparmos situações com as quais não estamos ainda confrontados, porque as circunstâncias podem ser diversas”, diz.
Mas é aqui que entra um outro dado na equação, que não é esquecido nos corredores comunistas: a viragem do PS à esquerda e a própria discussão que acreditam estar a ser timidamente feita dentro da Europa sobre a “irracionalidade” do tratado orçamental. “O caminho da flexibilização, da racionalização e da alteração dos termos do tratado já está a ser feito”, acredita Honório Novo, recordando-se de um debate que assistiu há dias entre o ex-ministro das Finanças socialista Teixeira dos Santos e Braga de Macedo, onde se assumia que o conceito de défice estrutural introduzido no tratado orçamental era “um conceito irracional”. O mesmo para a questão da renegociação da dívida, onde o PS aceitou sentar-se à mesa num grupo de trabalho com o Bloco de Esquerda para estudar o assunto. “Não o reconhecendo publicamente, uma parte crescente do PS já está convencida de que é preciso renegociar a dívida”, diz o ex-deputado.
A custo ou não, a geringonça lá se move. Para a esquerda. E sem dar sinais de estar a perder parafusos. Se havia risco de o fiel eleitorado do PCP torcer o nariz à extravagância e penalizar o partido nas intenções de voto, isso não parece estar a acontecer. Esta sexta-feira, o barómetro da Eurosondagem SIC/Expresso relativo a maio dá conta de que Jerónimo duplicou o saldo de popularidade, passando pela primeira vez a barreira dos dois algarismos. “As pessoas estão contentes, as sondagens não têm dado sequer sinais de erosão, antes pelo contrário. O facto de o PCP ter alguma influência na governação é encorajador”, constata Carlos Brito, que conhece o partido por dentro.
Os próximos desafios, além do congresso de dezembro, onde o PCP vai ter de falar mais para dentro do que nunca para tranquilizar militantes e eleitores, são as eleições que se seguem — e logo autárquicas, tão caras aos comunistas. Ai será a prova dos nove. Mas depois de se ter assistido ao impensável, ninguém parece estar preocupado. Ao contrário do que dizia esta semana à Antena 1 o fundador do BE Fernando Rosas, o PCP pode mesmo estar a perder o “medo” de se abrir à colaboração à esquerda e até há quem admita reedições da geringonça em níveis micro, à escala local. Carlos Brito é um aficionado. “É um caminho com muitas dificuldades, sim, mas até aqui também era difícil e os obstáculos foram todos superados de forma surpreendente”, constata.
O segredo está no “diálogo” e, claro, na paciência de um soldado que se protege na sua trincheira e se alimenta de pequenas vitórias, uma de cada vez. Até à vitória final ou até ao desgaste da estratégia.