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Talvez não seja o melhor dia para celebrar mães horríveis, detestáveis, abusadoras e negligentes. Talvez seja. Em primeiro lugar porque são mães ficcionais. Em segundo lugar porque não só traumatizaram os seus filhos (também eles ficcionais) como puseram muitos espectadores a refletir sobre a maternidade e outros a pensar se é muito caro contratar os serviços de um taxidermista.
Seria fácil olhar para a história de Hollywood e elaborar uma lista de mães superlativas, capazes de emocionar plateias de italianos, esses grandes especialistas em assuntos maternais, como escreveu Ruy Castro. A infeliz Debra Winger (e a sua mãe, Shirley MacLaine) em “Laços de Ternura”, a desesperada Angelina Jolie em “A Troca”, a vingativa Sissy Spacek (e que já vamos encontrar daqui a nada) em “Vidas Privadas”, Susan Sarandon em “Lado a Lado”, Cher em “A Máscara”, Linda Hamilton em “Exterminador Implacável 2”, Jodie Foster em dose dupla, a proteger a filha em “Sala de Pânico” e quase a ficar louca em “Flightplan – Pânico a Bordo” com o desaparecimento de outra filha chegam como exemplos.
Mas num dia cor-de-rosa, em que todas as mães são as melhores do mundo, é mais divertido lembrar mães cinematográficas que não se desejam nem ao pior inimigo. Diz-se que mãe, só há uma. Nestes casos, felizmente.
O Candidato da Manchúria / O Candidato da Verdade
Mãe que é mãe deseja que o filho seja bem-sucedido na vida, seja como jogador de futebol milionário, empresário com avião privado ou Presidente da maior potência do mundo. Outra questão é saber o que estariam dispostas a fazer para pôr o filho no topo da hierarquia política mundial e com que intenções. A resposta dada por Angela Lansbury em “O Candidato da Manchúria” (e por Meryl Streep – sinistramente parecida com uma tal Hillary Clinton – no remake, “O Candidato da Verdade”) não tranquiliza o coração de nenhum filho, em particular o de Raymond Prentiss Shaw, que descobre estar a ser usado pela progenitora como Cavalo de Tróia para pôr o destino dos EUA nas mãos dos seus piores inimigos. No filme de 2004, a cena em que Meryl Streep dá banho ao filho corrompe a expressão “amor de mãe” e é o mais próximo do incesto que um filme de Hollywood pode ir.
I.A. – Inteligência Artificial
Está bem, todos sabemos que o “filho” é um robô, adquirido pelos pais para substituir o filho biológico que tem uma doença incurável e está conservado em vinha d’alhos. Mas mesmo assim… A mãe até simpatiza com o robô. Ele é obediente e limpinho. O robô adora a mãe. Acontece que o filho biológico recupera milagrosamente do estado vegetativo e o valor do robô passa a ser o de uma torradeira avariada. É então que a mãe abandona o eletrodoméstico na berma da estrada, numa cena em que todos os lenços de papel são poucos. Quase no fim do filme, há a cena que define a nova escala pela qual se medem os níveis de sentimentalismo no cinema: muitos e muitos anos depois, com o auxílio da tecnologia de uns extra-terrestres elegantíssimos, o robô vê realizado o seu desejo de reencontrar a mãe que o abandonou. O expoente máximo do tearjerkerismo de Spielberg.
Os Outros
Proteger os filhos de fantasmas que assombram a casa de campo é obrigação de qualquer mãe que se preze. E, no início, é assim que vemos Nicole Kidman: mãe protetora, católica, um pouco paranoica, o que se compreende porque o marido está ausente e as crianças – como pequenos vampiros britânicos – não se dão muito bem com a luz. A chegada da família do caseiro e da família aumenta ainda mais o sentimento de insegurança, mas nada que não se resolva com os comprimidinhos tomados à hora certa e com uma limpeza espiritual da casa. Só no final é que o terrível segredo é revelado: todas as personagens morreram há muito. Pior: foi a mãe que matou as crianças. Os fantasmas são eles. Eles são os outros.
https://www.youtube.com/watch?v=0bMEGtUxajY
Precious
Ora aqui está um caso digno de uma Fátima Lopes. Precious (Gabourey Sidibe) é uma adolescente negra, obesa, analfabeta, com uma filha com Síndrome de Down e que descobre estar à espera do segundo filho. Pormenor sórdido: os filhos são resultado das violações do pai. Outro: a mãe de Precious tolera os abusos, culpa a filha por tudo o que lhe acontece de mal e não perde uma oportunidade para agredir e humilhar a rapariga. A maldade da mãe de Precious é tão realista que a meio do filme temos vontade de ligar para a Segurança Social ou para um jornalista do Correio da Manhã. Mo’nique ganhou o Óscar pelo seu desempenho e com toda a justiça. Pode haver no cinema outros casos de mães altamente indesejáveis, mas nenhuma é tão brutalmente real como esta.
Sozinho em Casa
À primeira vista, a negligência dos pais de Kevin (Macaulay Culkin) é compreensível: têm muitos filhos, a confusão é enorme e, para que a comédia aconteça, é preciso que o filho mais novo fique para trás. Para assegurar que o equipamento materno-emocional está a funcionar a mãe até grita de horror quando se apercebe do lapso. Porém, da mesma maneira que algumas interpretações arrojadas veem no pequeno Kevin o retrato de um psicopata enquanto criança traquina, um olhar mais atento mostra-nos uns pais de filme de terror e não de comédia natalícia. Quando vos falarem das vantagens de ter uma família numerosa argumentem com as despesas e a mãe do “Sozinho em Casa”.
Carrie
Há aquelas mães que são as melhores amigas das filhas para toda a vida, partilham confidências, segredos, dão conselhos. E depois há mães como a de Carrie, que não contribui muito para a auto-confiança da filha. Carrie é a antítese da adolescente popular. Excessivamente tímida e de uma beleza estranha (quase alienígena), a rapariga é constantemente gozada pelas colegas de escola. Quando chega a casa, em vez de apoio, encontra uma mãe que só lhe fala em pecados e punições e que, a certa altura, se convence de que a filha é uma bruxa. É verdade que Carrie tem poderes telecinéticos, mas para outros pais isso até seria um motivo de orgulho (e um dom muito útil para ajudar nas mudanças). No final, já depois de Carrie se ter vingado de colegas e professores, a mãe, numa derradeira demonstração dos seus sentimentos, espeta-lhe uma faca nas costas. A resposta da filha é adequadamente religiosa.
Querida Mãezinha
Uma querida mãe ficcional inspirada numa mãe real. Esta é a história da atriz Joan Crawford tal como contada pela filha adotiva, Christina. Crawford era uma das grandes estrelas da Idade de Ouro de Hollywood, mas a sua vida pessoal não era um mar de rosas, em parte devido à sua personalidade obsessiva. A atriz impunha a si mesma e a todos os que a rodeavam um regime marcial de disciplina. E o que é bom no Colégio Militar pode não ser muito saudável no dia-a-dia de uma família. Depois de vários abortos espontâneos, Crawford adotou duas crianças, Christina e Christopher (posteriormente adotou mais duas meninas), e a menina foi a grande vítima dos desequilíbrios emocionais da mãe, que não tinha problemas em humilhá-la à frente dos amigos e, em certas ocasiões, em agredi-la fisicamente. Para se ter uma ideia do grau de malvadez desta mãezinha querida, Crawford, antes de morrer, deserdou os filhos mais velhos e admitiu que os tinha adotado por uma questão de bom imprensa. Com uma mãe assim, até a madrasta da Cinderela merece um prémio humanitário.
Atira a Mamã do Comboio
Inspirado no clássico de Alfred Hitchcock, “O Desconhecido do Norte-Expresso”, “Atira a Mamã do Comboio” é, como o título indica, uma comovente declaração de amor filial. Enquanto Billy Cristal, um escritor de sucesso, tem todas as razões para estar zangado com a ex-mulher, Danny de Vito, aspirante a escritor de thrillers, já não aguenta a pancada da mãe paranoica. Então, depois de ver o filme de Hitchcock, sugere que troquem de vítimas: ele oferece-se para assassinar a mulher de Crystal e, em troca, este terá de eliminar a terrível mamã. O problema é que a senhora revela uma resistência acima da média e o plano acabar por não resultar. Até o filho, que no início não consegue controlar os seus instintos matricidas, acaba por chegar à conclusão de que o homicídio talvez seja uma reacção exagerada aos inúmeros defeitos da senhora (magnífica Anne Ramsey, num dos seus últimos papéis e que lhe valeu uma nomeação para o Óscar de Melhor Atriz Secundária).
Gente Vulgar
Ver Mary Tyler Moore no papel de uma mãe fria e cruel foi um choque tão grande para o público americano como ver Henry Fonda a desempenhar o papel de assassino com olhos de anjo em Aconteceu no Oeste. Moore era uma figura habitual na casa dos americanos, com a sua sitcom Mary Tyler Moore Show. No filme que marcou a estreia de Robert Redford como realizador, Moore é uma mãe que perdeu um dos filhos (o preferido) num acidente e não se mostra muito disponível para ajudar aquele que sobreviveu a lidar com o trauma. Tudo o que lhe interessa é “regressar à normalidade”, independentemente do estado de fragilidade mental do filho. No final, a mãe decide abandonar a casa de família, deixando para trás o marido e o filho.
Psico
Quem não sabe fica a saber que Norma, a mãe de Norman Bates, está morta. Morta, mas não enterrada. O filho não conseguia viver com ela, mas também não conseguia viver sem ela. Então arranjou a solução intermédia de depositar a mãezinha na cave, empalhada, depois de a ter assassinado. Mas não é só aí – exposta aos efeitos da humidade – que Norma continua presente. É sobretudo na cabeça do filho: Norma vive dentro de Norman. No final descobre-se que Norman tinha assassinado a mãe e o namorado desta por ciúmes e que depois disso, sempre que se sentia atraído por alguma mulher, a mãe tomava conta da personalidade dele e obrigava-o a matar. Freud, dupla personalidade, violência, esquizofrenia, psicopatia, taxidermia e a sombra da mãe a pairar sobre o motel: definitivamente, há presentes mais adequados para o dia da mãe.
Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance As Primeiras Coisas, vencedor do prémio José Saramago em 2015