Quando tinha cinco, seis anos, tive uma fixação nos Beatles. Lembro-me de ver os filmes na televisão e sentir um entusiasmo tremendo, quase histérico. Foi assim até “Yellow Submarine”. Desse eu tive medo. Era demasiado psicadelismo para a minha infância rural. Naquela fase gostava do “Hard’s Days Night”, do “Help!” e do “She Loves You” e o meu Beatle preferido era o Ringo Starr.
O John Lennon tinha um ar demasiado sério e intimidante, o Paul McCartney parecia-me demasiado simpático, logo suspeito, gostava do George Harrison, na verdade, gostava quase tanto dele como do Ringo, mas este tinha um ar pateta e tocava bateria, por isso era o eleito. Em tempos chegou a haver piadas sobre a falta de inteligência dos bateristas e Ringo Starr até costumava ser dado como exemplo, mas estudos científicos já provaram que o cérebro dos bateristas é invulgarmente ágil e Ringo também aí pode ser dado como exemplo. Afinal, o ritmo também é uma ciência, no caso dele, aprendida na adversidade, uma vez que nasceu canhoto mas foi treinado para ser destro o que acabou por determinar uma relação muito particular com a bateria que, inevitavelmente, se refletiu na música.

A capa da nova compilação “Pure McCartney” (edição Concord). Na versão Deluxe, são quase 70 canções da carreira a solo do ex-Beatle.
Apesar de ter vestido a pele de bobo e ser o Beatle mais subvalorizado, Ringo foi fundamental no som do quarteto de Liverpool. Yoko Ono considerou-o “o Beatle mais influente” numa entrevista à Rolling Stone, aquando da atribuição da estrela no Rock and Roll Hall Of Fame (foi o último Beatle a receber uma estrela em nome próprio). George, John e Paul reconheceram sempre que Ringo era a peça que faltava aos Beatles e que a sua substituição de Pete Best foi fundamental para dar consistência à banda.
Em 1962, quando se juntou aos Beatles, Ringo era um baterista experiente, certeiro e versátil. Já tinha a sua quota de atenção com os Hurricanes, mas nada que pudesse competir com os holofotes que, já na altura, incidiam sobre os Beatles. George Martin, de resto, deu-lhe tanto crédito que nem o deixou tocar na primeira gravação da banda para a EMI. Discreto e condenado à linha de trás de palco, até parecia que Ringo não fazia mais nada além de caretas, mas basta ouvir os discos para se perceber o seu génio.
Tomemos como exemplo uma das canções mais conhecidas dos Beatles, “Ticket To Ride” (1965), é pop em estado de graça, aparentemente simples, com as guitarras e vozes como protagonistas mas, se escutarmos bem, a bateria, pesada, quase desconjuntada, segura toda a canção.
https://www.youtube.com/watch?v=TIdAjm2wfQI
O mesmo acontece em “Rain” (1966), canção conhecida como o melhor lado B dos Beatles — segundo o próprio Ringo, o seu melhor momento enquanto baterista da banda. Em “Rain”, o ritmo é intenso e dinâmico, mas contido, e quase se atropela sem nunca vacilar.
https://www.youtube.com/watch?v=lICpC2GoHjg
“Tomorrow Never Knows, a faixa mais experimental de Revolver (1966), é também uma das canções em que a bateria de Ringo tem um papel propulsor e unificador da experiência psicadélica.
https://www.youtube.com/watch?v=Ah2ckzXgrx4
Já em “Come Together”, inicialmente composta por John Lennon como hino de campanha de Timothy Leary, guru do LSD que em 1970 se candidatou a governador da Califórnia contra Ronald Reagan, Ringo é hipnótico, toca blues de forma sólida, faz fraseados com os címbalos e torna a bateria um dos elementos mais importantes da canção.
Muitas vezes acusado de tocar sempre da mesma maneira, Ringo tem muitos argumentos fortes para atestar sobre a sua criatividade e engenho rítmicos. Escreveu apenas duas canções dos Beatles, “Don’t Pass me By” e “Octopus’s Garden”, cantou em algumas, mas a sua assinatura nunca teve tanta projeção como a dos outros elementos da banda. Teve pose sóbria numa era de bateristas virtuosos e carismáticos (Keith Moon dos The Who, John Bonham dos Led Zeppelin, Mitch Mitchell da Jimi Hendrix Exprience…), não fazer solos certamente custou-lhe alguns pontos no capítulo da projeção pessoal mas, finalmente, a sua importância começa a ser reconhecida.
No dia 7 de Julho, Ringo fará 76 anos. Apresenta uma vitalidade invejável, tanto física como intelectual e, a julgar pelas suas afirmações em 2015, é o único Beatle vivo. Paul McCartney terá morrido num acidente de automóvel em 1966 e sido substituído por um sósia, até hoje. A história é dos anos 60, mas Ringo terá dito que é verdade (McCartney desmentiu…). Sempre teve sentido de humor. Mais uma razão para gostar dele.
E o seu Beatle favorito, qual é?
Isilda Sanches é jornalista e animadora de rádio na Antena 3