O mundo de ontem e o de hoje

1. A 22 de Fevereiro de 1942 Stefan Zweig e a sua jovem mulher puseram termo à vida ingerindo uma dose letal de um barbitúrico. Chegava, assim, ao fim, na cidade brasileira de Petrópolis, a existência de um dos grandes espíritos europeus da primeira metade do século XX. Poucos meses depois era publicado o seu derradeiro livro, um longo ensaio autobiográfico, intitulado O Mundo de Ontem. Este foi imediatamente recebido como um extraordinário testemunho quer do período que antecedeu a Primeira Guerra Mundial, quer do tempo correspondente ao intervalo entre as duas Grandes Guerras. A obra, escrita com uma notável elegância estilística, remete-nos para um mundo razoavelmente harmonioso, anterior à eclosão das grandes tragédias que feriram de morte o continente europeu. É precisamente essa representação idílica do passado que é objecto de questionamento no presente. Na sua edição de Maio a revista Lire publica dois interessantes textos que, no fundo, acusam Zweig de se ter deixado iludir por uma utopia retrospectiva.

Marc Riglet e Jean Blain, os autores dos artigos referidos, sustentam uma tese muito clara: Zweig, oriundo da alta burguesia judaica vienense, movia-se no mundo da alta cultura europeia marcada por um ambiente profundamente cosmopolita e ignorava os aspectos sombrios do Império Austro-Húngaro e os múltiplos atavismos da própria sociedade austríaca. Esta caracterizar-se-ia por um elevado grau de conformismo e tratou com hostilidade alguns dos espíritos mais inovadores que surgiram no seu seio, nomeadamente Freud e Schönberg. Riglet lembra mesmo a carta que Klaus Mann    (filho de Thomas Mann) enviou a Zweig, num tom tão respeitoso quanto crítico, na altura em que este viu na eleição de 107 deputados nazis para o Reichstag a expressão de uma revolta juvenil contra a alta política. Mann observou-lhe que um jovem nazi, pela circunstância de ser jovem, não deixa de ser um nazi.

Na nota que deixou aquando do suicídio o escritor austríaco explicou que já não se sentia com forças para reconstruir a sua vida depois de ter assistido à aniquilação da sua pátria espiritual, a Europa. Zweig decide morrer quando constata a morte do seu mundo de valores e de referências, “ o mundo de ontem “, a Europa na sua expressão luminosa. Ora, por muito que essa representação mental contivesse elementos de uma projecção onírica numa utopia regressiva ela não deixava, também, de corresponder a uma certa realidade. A Europa liberal, culta, cosmopolita, impregnada de discussões filosóficas e votada ao culto da ciência e das artes existia. Não era toda a Europa mas era uma parte especialmente brilhante dela. É, aliás, compreensível que Stefan Zweig a valorizasse de tal modo que chegasse ao ponto de perder de vista o processo de gestação das forças demoníacas que em pouco tempo tomariam de assalto a velha Europa. Curiosamente essas forças tenebrosas, anti-liberais, anti-cosmopolitas e anti-semitas fariam o seu caminho pelo meio da democracia. Antes de  subvertê-la radicalmente o próprio Hitler beneficiou dos favores da democracia germânica. Na Áustria o mais ignóbil anti-semitismo suscitou uma ampla adesão popular. Zweig terá, consciente ou inconscientemente, fechado os olhos a uma realidade que ofendia mortalmente o seu belo ideal europeu. Quando se deu conta em absoluto da catástrofe que se havia abatido sobre “ o mundo de ontem “ não encontrou forças para lutar por “ o mundo de amanhã “. Sucumbiu à morte da sua ideia de Europa que não era nem mais nem menos do que a sua ideia de Civilização. Haverá quem o acuse de falta de lucidez, quem lamente o seu último gesto de desistência. Dificilmente, porém, se lhe poderá negar uma absoluta identificação com o melhor do espírito europeu.

2. No próximo domingo os austríacos vão escolher o seu próximo Presidente da República. A primeira volta ficou caracterizada pelo insucesso dos candidatos apoiados pelos partidos do centro-esquerda e do centro-direita e pela excepcional votação alcançada pelo candidato da extrema-direita. Agora, na segunda volta, este enfrentará um candidato ecologista que beneficia do apoio de todas as forças democráticas austríacas. Apesar disso, a possibilidade da Áustria acordar na segunda-feira com um Presidente de inclinações proto-fascistas é bastante elevada. Se isso suceder seremos levados a recordar episódios sinistros da vida daquele país e a reler a obra de Thomas Bernhard, esse inclemente observador crítico da sociedade austríaca. Enganar-nos-emos, contudo, se cairmos na tentação de circunscrever este novo mal àquele país ou de atribuir a sua origem a causas estritamente económico-sociais. A Europa está de novo confrontada com velhos demónios conhecidos. O seu lado luminoso, o “mundo de ontem“ de Stefan Zweig, só poderá continuar a ser o nosso “ mundo de hoje “ se ousarmos enfrentar corajosamente a doença extremista e populista que está a crescer à nossa volta.

  

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