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Joost De Raeymaeker/LUSA

Joost De Raeymaeker/LUSA

"Implorei ao Luaty que acabasse com a greve de fome"

No dia 25 é editado "Diário de um Preso Político", de Luaty Beirão. Antes, o Observador publica o relato da mulher, Mónica Almeida, que recorda a detenção do ativista e o início da greve de fome.

Juntamente com outros 16 ativistas, Luaty Beirão foi preso a 20 de junho de 2015 por estar a ler uma adaptação do livro Da Ditadura à Democracia (um original de Gene Sharp). Foi levado para o estabelecimento prisional Calomboloca e colocado em isolamento. Esteve 36 dias em greve fome, em protesto contra uma detenção sem julgamento.

No livro que é publicado pela Tinta da China a 25 de novembro está o diário que Luaty escreveu nos primeiros 16 dias de prisão, num caderno que conseguiu esconder e, depois, fazer sair da prisão. Já em março deste ano, os ativistas foram julgados e condenados. A Luaty foi decretada uma pena de cinco anos e seis meses de prisão. Foi-lhe atribuída depois a liberdade condicional, em junho, antes de uma amnistia decretada pelas autoridades angolanas.

Este é o relato desses primeiros dias escrito por Mónica Almeida, mulher de Luaty Beirão. Um relato que o Observador publica em exclusivo e que recorda a detenção do músico e ativista e os primeiros dias da greve de fome.

luaty tinta

“Diário de um preso político angolano”, de Luaty Beirão (Tinta da China, editado dia 25)

«No dia 20 de Junho de 2015 tinha chegado a casa depois de fotografar um baptizado quando fui surpreendida pelo toque da campainha. Pela câmara vi o Luaty. Só quando abri a porta é que percebi que estava acompanhado. Não dei conta de que estava algemado.

O Luaty pediu-me que não deixasse entrar os senhores. Reparei que havia carros da polícia a impedir a rua. “Luaty, calma, eu quero colaborar”, disse. “Temos um mandado de busca e apreensão de materiais informáticos”, disse um senhor do SIC não identificado nem uniformizado. “E onde está o mandado?”, perguntei. O Luaty, muito calmo, voltou a dizer que não os deixasse entrar. “Vou contactar o meu advogado, aguardem por favor.”

Quando me preparava para fechar a porta surgiu um agente que a empurrou e me feriu um dedo. Comecei a correr para o telefone e entraram vários homens, alguns fardados e de armas em riste. Dirigiram-se ao meu estúdio como se já conhecessem a casa e começaram a tirar as coisas.

Fiquei nervosa, liguei a várias pessoas. Quando vi que iam levar um computador meu disse: “Não, por favor, não levem este, tem material do último congresso que fotografei do MPLA.” Um homem respondeu: “Não te preocupes, foi mesmo o MPLA que nos mandou e na segunda devolvemos tudo.” Começaram a chegar alguns familiares, que viram o aparato policial hostil. O Luaty continuava num canto da sala, quieto e algemado, sempre muito tranquilo e a tentar transmitir-me calma. O meu primo, que é advogado, assustou-se com aquilo e a tensão subiu.

Quando vi um deles a dirigir-se às escadas para ir até aos nossos quartos, onde a empregada estava com a minha filha, pus-me à sua frente de joelhos: “Não faça isso, tenho a bebé lá em cima, não faça isso.” Ele respeitou o meu apelo.

Levei-lhe comida e o saco-cama logo no dia 22. Fui firme e exigi que lhe entregassem a comida e dentro do meu alcance de visão. O Luaty gritou por mim e perguntou se eu não tinha perdido o saco de vista. Gritei de volta: “Não, amor.”

Levaram o Luaty. Fomos procurá-lo no Comando Geral, disseram-nos que ele não estava. Na 29.ª esquadra também diziam que não estava. E o meu mundo caiu.

Acabámos por encontrá-lo na 29.ª esquadra, onde passou a primeira semana. Levei-lhe comida e o saco-cama logo no dia 22. Fui firme e exigi que lhe entregassem a comida e dentro do meu alcance de visão. O Luaty gritou por mim e perguntou se eu não tinha perdido o saco de vista. Gritei de volta: “Não, amor.”

No dia seguinte levei mais comida e puxei conversa com um agente, que me garantiu que entregaria um bilhete ao Luaty. Escrevi-o em linguagem codificada: “Os frutos secos são a tua viagem e eu sou a tua mochila.” Queria dizer-lhe que estava a mandar os frutos secos para ele gerir tal como fizera na aventura Lisboa-Luanda a pé, em que eram o seu único alimento, e que eu estava ali para ele. O bilhete nunca foi entregue, mas ele percebeu a mensagem.

No sábado, quando o fomos visitar, disseram-nos que ele tinha sido transferido mas que não sabiam para onde. O meu cunhado ouviu alguém dizer que tinham ido para Calomboloca. Foi até lá, perguntou pelo Luaty, disseram que não estava lá.

No dia 28 de Junho, eu, o Pedro Beirão, o Rafael Marques, o Zé Duarte, a Paulinha, a Cristina Pinto e outras pessoas voltámos a Calomboloca. Perdemo-nos no caminho de terra batida, com capim alto de um lado e do outro. Seguimos devagar, em caravana, tentando descobrir onde ficava a cadeia. Ao fim de dez minutos, avistámo-la. Quando estávamos a chegar ao portão principal, vimos ao longe o Luaty. Aquele andar é inconfundível. E por ser clarinho – mulato ou branco – não restavam dúvidas. Começámos logo a buzinar.

Ficámos ali em pé, à espera que alguém nos deixasse entrar. Mais de uma hora depois apareceu o director da cadeia, senhor Agostinho, um homem negro de meia-idade, baixo, cabelos brancos e bigode, vestido com uma roupa desportiva, com uns olhos avermelhados que me lembraram logo o Bento Kangamba – olhos de quem bebe, ou bebeu, muito vinho, cerveja, maruvo, sei lá. Não me agradou.

Explicou que havia regras e que não era dia de visitas. No dia seguinte, foi até lá o MCK. Interditaram-no também, mas disseram-lhe que afixariam um papel com os dias permitidos.

A primeira vez que me deixaram ver o Luaty foi no dia 30, e encontrámo-nos numa sala próxima da reeducação, onde antes um senhor esteve a falar comigo durante uma hora para eu aconselhar o meu marido a não se meter em práticas impróprias. Dei-lhe a volta. Afirmei que não concordava com as práticas do meu marido (o que em parte era verdade – ninguém quer um marido na mira da polícia e do MPLA). Disse-lhe quem foi o pai do Luaty e o que eu achava sobre o país. Ele percebeu que eu seria “alheia” às práticas de manifestações, e concedeu-nos a sala por algum tempo.

Levava escondido comigo um iPod e uma folha com perguntas em forma de entrevista para que o Luaty me explicasse exactamente o que se tinha passado. Queria documentar e tentar dizer-lhe que estava a gravar. Ele não percebeu mas respondeu a tudo. Ainda tenho essa gravação. Ofereci uma tangerina ao senhor quando ele voltou.

O Luaty saiu com as mãos trás das costas, sempre com um ar tranquilo. Para mim era tudo novo. Tentei segurar-me com um sorriso, e o senhor disse: “És uma boa pessoa e uma peça fundamental para a mudança do teu marido. O partido gosta de ti.” Franzi a sobrancelha, abanei a cabeça em reprovação, dei as costas e fui-me embora.

Na semana seguinte era o aniversário da Luena, a nossa filha. Fui a Calomboloca com uma carta lembrando-lhe que a nossa Luena fazia dois anos e precisava do pai vivo. Nunca vi pessoa mais teimosa e convicta do que o meu amor.

Eu não sabia o que estava a acontecer. O Jornal de Angola noticiava GOLPE DE ESTADO, nas redes sociais pouco se falava, e tentei continuar a minha vida: ia para o trabalho, ninguém fazia ideia de quem eu era nem quem era o meu marido e aquilo que estávamos a passar.

A distância até Calomboloca era enorme, e tínhamos de nos organizar bem, por causa dos nossos compromissos profissionais. Tentámos que cada um de nós fosse pelo menos uma vez por semana levar comida ao Luaty, ou visitá-lo nos dias estipulados.

Quando a 10 de Julho o meu cunhado Pedro foi visitar o Luaty, tomou conhecimento de uma medida disciplinar através de palavras proferidas sobre José Eduardo dos Santos na sala da reeducação. O Luaty tinha ficado impedido de ter qualquer tipo de comunicação com o exterior durante dois meses, uma pena que só é aplicada a reclusos que agridam ou ponham em perigo a segurança da guarda prisional ou de outros reclusos. Para mim, foi o fim. Dois meses pareciam-me uma eternidade, e nem conseguia imaginar como seria para ele.

Escrevi muitas cartas ao meu marido, mas elas nunca chegaram. Até pedi uma audiência com o director para lhe mostrar a lei sobre o direito dos reclusos à privacidade. Ainda propus não selar os envelopes em casa, mas sim na frente deles – nada resultou.

Ao fim de 90 dias de prisão preventiva e sem podermos comunicar, viajei para Lisboa. Recebemos depois uma carta que o Luaty entregou ao irmão Kiari, comunicando que tinham decidido fazer greve de fome. Dizia que iria até ao fim caso o procurador não se pronunciasse em relação à prisão preventiva. Uma carta chocante, a despedir-se e a dizer que, caso morresse, queria ser cremado e que as cinzas fossem lançadas ao mar.

Quando regressei a Luanda já o Luaty estava no 12.º dia de greve de fome. Pedi que parasse, implorei. Continuou irredutível, tentou que percebêssemos as suas razões. Na semana seguinte era o aniversário da Luena, a nossa filha. Fui a Calomboloca com uma carta lembrando-lhe que a nossa Luena fazia dois anos e precisava do pai vivo. Nunca vi pessoa mais teimosa e convicta do que o meu amor.

Fizemos vigílias para que ele parasse, muitos apelos, mas tudo o que o Luaty queria era que a justiça fizesse o seu trabalho.

Quando foi transferido para o hospital, várias pessoas queriam vê-lo, mas só me deixavam entrar a mim, a mãe e os irmãos. Um dia abdiquei da minha visita para dar a vez à Vilma – amiga do Luaty, ex-namorada com quem mantém uma óptima relação de amizade. Ela tinha viajado para Luanda única e exclusivamente para o ver. Depois uma alma caridosa deixou que eu e a minha sogra entrássemos com ela. Ainda nos rimos por estarem “as mulheres da vida do Luaty” todas juntas.

Nessa altura, a exaustão já era imensa. Todos os dias acordávamos e corríamos para a clínica só para saber se ele ainda estava vivo.»

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