Há dias ouvi Ricardo Carvalho, o nosso Matusalém, a dizer qualquer coisa como “estarei aqui enquanto o corpo aguentar.” Imaginei-o logo, venerando patriarca, a entrar em campo com andarilho, boina e aparelho auditivo. Falava como um velho, um Cícero. Como é outro o tempo do futebol! E cruel. Aos 38 anos um homem está acabado, há nele sintomas de velhice precoce, lombalgias, falhas de memória. O futuro está ali, a partilhar o balneário com os mais velhos, e a lembrá-los que o tempo deles está a chegar ao fim.
Lembrei-me de Roger Milla, avançado dos Camarões que no Mundial de 94, se não me engano, jogou de bengala. Assim que acabou o campeonato, foi transferido para o Museu de Arte Rupestre de Yaoundé. Também me lembrei de Lothar Matthäus (a maior desilusão da minha vida foi descobrir que este figurão media uns modestos 174 centímetros; autoritário que era, sempre me pareceu ter o dobro ou mesmo o triplo da altura). Prolongou a vida desportiva na Mannschaft até uns vetustíssimos 39 anos e fê-lo com sabedoria, a cada época mais recuado no terreno. É possível que tenha acabado a carreira onde tantos a começam, no lugar de apanha-bolas, um curioso Benjamin Button futebolístico.
No futebol a velhice chega cedo e a más horas. A única maneira de contrariar os efeitos do tempo é ser velho desde o início. Paulo Sousa, por exemplo. Aos dezanove anos já tinha trinta. Até nos juvenis, quando ainda jogava a ponta-de-lança, já tinha trinta. À saída da maternidade, Sousa já era o futebolista trintão que sempre foi. As lesões é que lhe arruinaram o estratagema para ludibriar o tempo. Quando acabou a carreira era quase centenário.
Ricardo Carvalho é outro. Em campo nunca foi jovem e ao longo da carreira só regrediu à infância (os franceses dizem “tomber en enfance” dos velhinhos que voltam a ser crianças) naquela decisão extemporânea que levou Paulo Bento (outro velho eterno) a condená-lo a um inapelável ostracismo. No resto, foi sempre discreto e fiável como um velho tesoureiro. O segredo da durabilidade de Ricardo Carvalho é esse: sempre foi velho. É isso que faz dele o mais jovem dos nossos jogadores.
Breves notas sobre os jogos de ontem:
– Samantha Fox, Dempsey & Makepeace e hooliganismo: eis três vestígios dos anos 80 que pensei que apenas sobrevivessem nos arquivos e na memória de alguns nostálgicos. Afinal, eles aí estão, os hooligans, regressados das cavernas, adeptos da violência gregária e idiota, com os seus cânticos primitivos, o arremesso ritual de garrafas, a obrigar-nos a pensar como é que a cultura que gerou o parlamentarismo moderno também pôde dar origem a estes neandertais das esplanadas.
– em campo, a Inglaterra nunca falha, que é como quem diz, falha sempre, mas de um modo cada vez mais criativo. Ontem, os ingleses foram autoritários, dominaram o jogo, criaram oportunidades, mandaram bolas ao poste, mas não conseguiram dar a estocada final aos russos, e um russo nunca é tão perigoso como quando está moribundo.
– consegui assistir a quase todo o jogo que opôs Albânia e Albânia B. Os albaneses verdadeiros sofreram um golo antes de trancarem os cadeados e a expulsão do capitão Cana (já tinha um amarelo quando jogou a bola com a mão, embora tenha tentado disfarçar com uma espécie de desmaio artístico), perto do final da primeira parte, foi quase fatal. O jogo decorreu num ambiente familiar. Não só havia dois irmãos em campo – Granit Xhaka pela Suíça e Taulant Xhaka pela Albânia – como a docilidade agrícola de algumas entradas lembrou a efusão dos encontros de parentes kosovares que há muito não se vêem. Na zona dos Balcãs, entrar de sola é o equivalente aos nossos beijos entre homens da mesma família, uma expressão de afecto, uma manifestação rural de carinho.
– fiz tudo o que estava ao meu alcance para não ver o País de Gales-Eslováquia. E fui bem-sucedido.