Em meados dos anos 90, Marcelo Rebelo de Sousa foi o primeiro líder do PSD a sentir a tragédia de comandar aquele partido na oposição, enquanto enfrentava o estado de graça do PS de António Guterres. No ciclo de oposição seguinte, durante as maiorias de José Sócrates, a cura de poder dos laranjinhas evoluiu para um psicodrama triturador de sucessivos líderes. Agora, Pedro Passos Coelho enfrenta um drama agravado: não sabe se volta ao poder, nem quando, nem como, apesar de ter ganho umas eleições e de ter formado um Governo para cair quinze dias depois. A “geringonça” de António Costa — que fez seis meses esta semana –, alterou radicalmente o equilíbrio de forças no sistema político português. Apesar de Passos se manter na liderança e de nem sequer haver um rosto assumido de oposição interna, o caminho do PSD é incerto. Durão Barroso sabia que ia ser primeiro-ministro, só não sabia quando; Passos Coelho sabe que já foi primeiro-ministro e sabe também que mesmo vencendo eleições pode não voltar a São Bento. Para já, trabalha no longo prazo. E espera por um estampanço da esquerda…
Em declarações ao Observador sobre os últimos seis meses, Pedro Passos Coelho não sai do registo habitual: “Estamos com naturalidade a fazer o que se espera do maior partido da oposição: afirmar o nosso modelo político e económico. Preocupa-nos a estratégia desta maioria. Mas estamos muito tranquilos e focados em manter uma relação de confiança com os portugueses”.
Esta semana, o líder do PSD tentou pôr as quatro rodas motrizes no chão. Interpelou António Costa no Parlamento pela primeira vez desde o congresso social-democrata, cavalgou a polémica dos contratos de associação na Educação e visitou escolas para falar com responsáveis do setor. Fez marcação. Reagiu. Para a semana tentará retomar a iniciativa.
Na segunda-feira regressará ao terreno de forma planeada. Começará a fazer viagens mais regulares através do país real, com uma primeira paragem em Leiria: vai visitar empresas, falar de economia e continuar a agitar a captação do investimento estrangeiro como bandeira primordial do partido – a par das questões financeiras e das contas públicas. O objetivo do presidente do PSD é demonstrar a importância das propostas que apresentou no Parlamento no âmbito do Plano Nacional de Reformas, como a recapitalização das empresas, por exemplo. E tentar mostrar que este tipo de políticas teria efeitos sociais no emprego, na segurança social, nos impostos. As iniciativas vão durar até ao fim do mês, e outro dos temas será a valorização do território.
Com mais ou menos eventos públicos, e apesar do brasileiro André Gustavo continuar a tratar do marketing do partido – o marqueteiro esteve recentemente em Portugal – Passos Coelho não deverá mudar o estilo de comunicação. “O mais relevante é salientar a substância de Passos, colocando em segundo plano a forma”, diz um próximo do presidente do partido para justificar a manutenção do registo de primeiro-ministro (que nunca abandonou, tal como o pin com a bandeira na lapela). A imagem que tentará passar ao longo dos próximos meses é a de um homem “bem preparado”, que já foi primeiro-ministro, “genuíno” e “coerente” por não mudar de opinião ao sabor das circunstâncias, explica a mesma fonte. Como se tem visto nos discursos de Passos Coelho, o eixo comunicacional da São Caetano passa por demonstrar que o PS apenas gere apenas o dia-a-dia e que o pensamento estratégico para o futuro do país está reservado ao PSD. Este conceito voltou a estar patente no debate quinzenal desta sexta-feira, quando Passos disse que, a manter-se este crescimento económico (0,1% no primeiro trimestre), nem que seja cinco vezes superior será possível ao Governo cumprir o previsto.
Não há qualquer vestígio de um esforço no sentido de Passos Coelho se tornar mais empático com as pessoas (um enorme contraste com Marcelo Rebelo de Sousa, por exemplo), nem de inflexão nesse tipo de estratégia de comunicação. José Manuel Durão Barroso chegou a dizer ao Expresso há uma semana, que, mesmo reconhecendo “grande admiração” por Passos ele falhou na relação com os portugueses a quem pediu os maiores sacrifícios: “Penso que ele não apresentou com empatia, com suficiente compreensão pelos problemas dos portugueses, as medidas que estava a levar a cabo. Acho que houve, de facto, um problema de comunicação, houve um problema de relacionamento profundo com o país”, admitiu Barroso (ele próprio uma figura pouco empática). Um antigo barrosista diz ao Observador que Passos “matou o partido” e que está “completamente desligado do partido e do país”.
Fazer de morto compensa, ou vale mais fazer habilidades?
Não é porém essa a perceção de outras figuras do partido. Um antigo alto dirigente do PSD comenta com o Observador que Pedro Passos Coelho está numa de “fazer de morto”, sem “tomar iniciativas” e refere que “não se compreende a modalidade de não confrontar o primeiro-ministro em todos os debates quinzenais”, o que aconteceu duas vezes seguidas, deixando o protagonismo ao líder de bancada Luís Montenegro. Se um próximo diz que Passos “não se distrai com habilidades políticas”, José Matos Correia, que foi vice-presidente do PSD no mandato anterior, refere ao Observador que esta visão crítica consiste “numa lógica do politicamente correto sobre a forma como a oposição deve ser feita.”
Outro senador do partido comenta que o PSD “tem pouca produção ideológica, embora haja novas vices-presidentes com uma formação mais aprofundada”. E aponta: “O partido, no geral, tornou-se numa pirâmide de poder que não faz escolhas ideológicas. O congresso não teve ideia nenhuma. Falou-se em virar à esquerda, mas não se percebe quem é mais liberal ou mais à direita”. O lema de Passos até ao congresso de abril era “Social-Democracia Sempre!”, mas depois não insistiu em qualquer discurso que deslizasse um pouco mais para a esquerda. Preferiu manter o tom de realismo, sobretudo baseado nas contas públicas. O mesmo antigo dirigente questiona: “Onde é que aparecem artigos de dirigentes do partido sobre o sistema de Saúde, ou de Segurança Social?” E responsabiliza a generalidade dos dirigentes, por serem gente “sem ligação à vida real e pouca formação ideológica”.
Nem todos concordam, porém, com esta perspetiva. “Há duas visões claras para o país, como disse o Presidente da República no 25 de Abril”, explica ainda Matos Correia. E essa é uma clivagem ideológica muito marcada com o PS. “Continuamos fiéis à nossa orientação política, porque não acreditamos no que o Governo da ‘geringonça’ anda a fazer”. O discurso oficial do líder desde o congresso de Espinho é assumir que o Governo é legítimo, que tem solidez suficiente para governar, portanto, que agora mostre o seu valor para os portugueses depois julgarem. “Ficará provado que o projeto da esquerda causará danos ao país”, diz Miguel Morgado, deputado que já era um dos mais próximos conselheiros de Passos no Governo.
Não é bem fazer de morto. Mas, no seio do passismo, acredita-se que basta esperar para que o tempo dê razão ao PSD, de forma a ganhar eleições (de novo). O problema é essa perceção passar efetivamente para o eleitorado. Ou melhor: para o eleitorado suficiente. Ou ainda: para a grande maioria do eleitorado, e o problema está aí. Miguel Morgado é dos poucos que pronuncia as palavras mágicas: “Temos de ter maioria absoluta sozinhos ou coligados”, reconhece ao Observador. O drama reside aí.
Nuno Morais Sarmento, ex-ministro da Presidência de Durão Barroso e depois de Santana Lopes, não acredita sequer que o atual líder chegue a iniciar uma nova corrida eleitoral. Chegou a dizer, numa entrevista à Antena 1, antes do congresso de Espinho, que Passos Coelho era, a partir de agora, um líder a prazo. “[Só] com enorme dificuldade poderá ser candidato a primeiro-ministro daqui por três anos”. As dificuldades são o denominador comum de todos os líderes no PSD na oposição, até que um Governo socialista caia.
A maioria impossível a sós e a coligação inevitável
O que hoje é sabido pela direita percebeu Marcelo Rebelo de Sousa quando chegou à liderança do PSD em 1996. Há 20 anos, entendeu que sozinho o partido não voltaria tão depressa ao Governo, e isso era um problema que os laranjinhas não queriam ver. “Teve razão antes de tempo”, diz um senador do partido. “O partido ainda não estava preparado”. Todo o PSD estava a passar por uma imensa ressaca. Os sociais-democratas mandavam no país desde 1979: primeiro com a Aliança Democrática (PSD-CDS-PPM), depois em 1983 com o Bloco Central (PS-PSD), e a seguir através das maiorias de Cavaco Silva (1985-1995). A máquina partidária, viciada no poder, sofria com o jejum depois da abundância, enquanto o PS de António Guterres vivia na mais fulgurante aprovação pública. Marcelo antecipou-se, quando decidiu fazer a Alternativa Democrática com o CDS – o problema é que do outro lado estava Paulo Portas. Naquela época, pouco mais podia fazer do que tentar impedir uma maioria absoluta dos socialistas.
Dramático para Marcelo na oposição foi convencer o seu partido — que ainda odiava Portas — da impossibilidade de voltar ao poder sem o CDS. A verdade é que nunca mais o PSD voltou ao poder sem o partido à sua direita. Durão Barroso só formou Governo em 2002 ao coligar-se com Paulo Portas, depois de uma campanha muito dura entre ambos. Sem o CDS, em 2011, Passos Coelho não teria condições para governar. No presente, a agravante é que, mesmo ganhando eleições coligado com o CDS, isso pode não chegar. As sondagens da SIC/Expresso e do Correio da Manhã conhecidas esta sexta-feira dão o PS à frente do PSD, e a crescer. Mesmo coligado com o CDS, é curto para a direita voltar ao poder.
Só que Assunção Cristas também prepara o seu caminho e, sabe o Observador, vai dizendo em conversas com amigos sociais-democratas que agora cada um tem de fazer pela sua vida. Não é garantido sequer que nas próximas eleições os dois partidos vão juntos numa coligação pré-eleitoral ao estilo do PàF. Nesse cenário, podem piorar as expetativas de Passos Coelho. Sozinho contra o PS, o PSD pode não ser o mais votado. O PSD voltou ao drama, sem haver psicodrama. O caso é antigo com contornos novos. “Ele não tem pressa nas eleições, até porque as sondagens são péssimas”, diz um membro da Comissão Política. “Ele está à espera que isto dê o estoiro pelo lado económico”, afirma outro dirigente. O problema é o calendário: se as eleições chegarem depressa, o cenário pode não ser o mais favorável para o PSD. Um dos pontos críticos acontecerá no próximo outono com o Orçamento do Estado. Mas se a “geringonça” sofrer uma crise ainda mais tarde, pode ser tarde demais. São estas as contas de muitos militantes e dirigentes do PSD. E aí as autárquicas de 2017 podem definir o futuro de Passos.
A ausência de oposição interna é uma novidade
Voltando atrás no tempo, o drama da oposição social-democrata em 1996-99 foi original. Marcelo ia ganhando tudo o que podia ganhar, como os referendos ao aborto e à regionalização. Alcançava vitórias significativas na revisão constitucional. Obtinha bons resultados nas autárquicas. Falava com o adversário e amigo Guterres, e aprovava-lhe os orçamentos para não deixar o PS refém do CDS e da esquerda. Fazia o discurso da responsabilidade, era para ajudar Portugal a entrar no euro. Mas nem isso chegou.
Ao consumar a aliança com o CDS, Marcelo passou a ter um adversário interno declarado: José Manuel Durão Barroso, que havia de lhe suceder. Esta é mais uma especificidade do PSD na era da “geringonça”: Pedro Passos Coelho é o primeiro líder do PSD na oposição sem um grupo de adversários internos ativos que o tente desgastar todos os dias. Francisco Sá Carneiro teve as Opções Inadiáveis — uma facção que cindiu com o partido em 1979 —, e Marcelo teve Durão Barroso. Depois, Durão Barroso teve Santana Lopes e Marques Mendes em ação permanente de contestação. A seguir, Marques Mendes teve de aguentar a pressão de Luís Filipe Menezes a morder-lhe as canelas e a preparar o aparelho para lhe suceder. Nos poucos meses em que liderou o partido, Menezes teve todo o ex-cavaquismo e quase todo o ex-barrosismo a conspirar contra si. Manuela Ferreira Leite, sucessora do menezismo, era a toda a hora alvo de grandes e pequenas conspirações lideradas por Miguel Relvas e Pedro Passos Coelho. O “pê-pê-dê” na oposição era garantia de animação e guerra certa. Agora não. Por enquanto.
Hoje, o líder do partido não tem mais do que uma ou outra voz crítica: José Eduardo Martins e Pedro Duarte assumiram esse papel no congresso. E depois há Rui Rio, que até pode um dia tentar liderar o partido, mas aparece apenas de vez em quando em público e não se constitui como adversário. A inexistência de oposição interna tem a ver, segundo vários sociais-democratas ouvidos pelo Observador, com o simples facto de Passos Coelho ter ganho as eleições. E de ter ganho umas eleições que eram dadas como perdidas poucos meses antes. Acabou por perder ganhando. Ou ganhando perdeu o poder. Mas apesar de tudo isso, o resultado eleitoral frustrado dá-lhe essa legitimidade.
Marcelo não teve isso. Durão Barroso entrou no partido com duas eleições à porta e perdeu ambas. Apareceu com enormes expetativas (era uma espécie de D. Sebastião), para depois se ter tornado no homem que não conseguiria lá chegar. Em 1999, António Guterres teve a maioria absoluta por um fio (faltou-lhe um deputado) e, mesmo assim, tornou o barrosismo num calvário. O segredo de Barroso foi a preparação das autárquicas de 2001 e as vitórias inesperadas em cidades tão importantes como Lisboa, Porto, Sintra e Faro. Precipitando a queda de Guterres, chegou ao poder. Para já, ninguém no PSD, perspetiva que Passos Coelho consiga um resultado brilhante.
No ciclo seguinte da oposição, em 2005, Luís Marques Mendes teve o mesmo problema de Marcelo 10 anos antes. Mas para pior. José Sócrates não só tinha uma altíssima popularidade (mesmo entre a direita), como contava com uma sólida maioria absoluta o — que adiava a prova dos nove do líder laranja para 2009. Não chegou lá. Mendes borregou em 2007, e outra vez o fator decisivo foram as autárquicas. A própria direção social-democrata provocou a queda da câmara de Lisboa liderada por Carmona Rodrigues (depois de este ter sido constituído arguido); Mendes viu Fernando Seara recusar uma candidatura à última hora; e Fernando Negrão serviu de recurso para uma derrota inevitável perante António Costa. Neste dominó, a peça seguinte a cair foi o próprio Luís Marques Mendes.
Quando Luís Filipe Menezes ascendeu à liderança, o PSD passou por um dos períodos de maior convulsão interna. O líder não aguentou a pressão. Demitiu-se. Com eleições na mira, Manuela Ferreira Leite até teve o pássaro na mão. Paulo Rangel obteve uma vitória estrondosa nas europeias de 2009, mas Manuela não conseguiu capitalizar o resultado contra José Sócrates nas legislativas de setembro do mesmo ano. Apenas lhe retirou a maioria absoluta. “Incompetência política”, afirma um alto dirigente do PSD.
Nenhum destes antigos líderes sociais-democratas na oposição alguma vez confrontou as esquerdas unidas no Governo. Nem nunca defrontaram um PS tão à esquerda como este. Passos Coelho vive na incerteza. Com a certeza de que a equação é radical: ou António Costa ou ele. Um dos dois homens não sobreviverá politicamente a este ciclo.