O caminho é longo, inacabável, angustiante. Muito antes do meio do percurso de curva e contracurva pela ladeira acima, começa a repetitiva paisagem da semana. De um lado e do outro da estrada, o mesmo negrume, a mesma desolação. Nos últimos 500 metros, o cenário ainda piora: parece que os eucaliptos secos, suspensos no ar apenas por umas frágeis raízes, vão cair a qualquer momento. Por fim, o topo da encosta.
Maria José Abreu, de 75 anos, mora nas Babosas, na parte alta do Funchal. A desgraça, como o carteiro, bateu-lhe à porta duas vezes. A 20 de fevereiro de 2010 foi a força das águas que lhe levou a casa e tudo o que lá tinha. Na terça-feira, a violência das chamas ia repetindo a história. Mas ela não deixou. “A polícia queria que saíssemos todos. Arrastaram-me para sair”, conta, emocionada. Maria José, o marido e os dois filhos não arredaram pé. “Se eu tivesse saído de casa, ela tinha pegado lume.”
Não pegou por sorte e porque a família passou todo o dia e toda a noite a atirar água para as zonas que mais facilmente podiam ser consumidas pelas chamas. Desta vez houve tempo para se precaverem. “Na terça de manhã, a campainha toca, eu levanto-me e só digo ‘lume!'”, relata. Ainda era falso alarme. As chamas viam-se ao longe, nas encostas vizinhas, e ninguém pensava que elas viessem incomodar por estas bandas. “Aquilo vai ficar lá”, disse-lhe um bombeiro. Só que o vento, endiabrado, mudou tudo. Ao soprar em todas as direções, rapidamente lhe pôs labaredas maiores que um eucalipto à porta de casa.

Outra vez a mesma história, pensou Maria José. Em 2010, a casa dela era neste mesmo vale, só que encostada ao muro que sustenta o Largo das Babosas. Na sala de estar ainda há uma fotografia dessa habitação, com dois andares, uns telheiros e umas hortas. “Este carro nunca apareceu. Tantas coisas que eu tinha dentro dessa casa… nunca mais as vi”, diz, apontando para o automóvel cinzento que está na imagem. Há seis anos, e ao contrário do que aconteceu agora, ninguém teve tempo para se preparar. “Na véspera disse ao meu marido, eram três horas da manhã: ‘Está a chover tanto que esta terra não aguenta’.”
Não aguentou mesmo. Do alto das montanhas vieram as águas descontroladas, a terra solta e os destroços do que já tinha sido destruído pelo caminho. Como a capela da Imaculada Conceição, logo ali a dois passos, de que não sobrou pedra sobre pedra. “Só tive tempo de olhar para cima e ver um aluvião por aí abaixo. Fiquei duas horas em pé com lama pelo pescoço.”
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O abraço e a vida normal
Quando o primeiro-ministro andou por estes lados, na quinta-feira, ouviu esta história da boca de Maria José Abreu e deu-lhe um abraço. Desta vez, “graças a Deus”, ela conseguiu salvar tudo o que tinha, mas há dezenas de vizinhos à volta que não tiveram a mesma sorte. “Estou sempre pensando no pior. Sinto o desgosto dessa gente.”
Ao longo de toda a encosta veem-se pessoas a lavar as casas, a empilhar destroços, a apagar pequenos focos de fumo, a tentar pôr de novo de pé aquilo a que estão habituadas a chamar vida normal. As Babosas são um local muito procurado pelos turistas. É daqui que parte o vertiginoso teleférico que desce para a baixa do Funchal e não é muito longe que fica o Jardim Tropical Monte Palace, ainda verdejante, em contraste absoluto com o que se vê a poucas dezenas de metros.
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Não é difícil imaginar este sítio como um dos mais apetecíveis e agradáveis do Funchal. Basta substituir esta paisagem negra pela exuberância verde que até há poucos dias aqui estava. É em sítios como este que se percebe que o Funchal é uma cidade-bombom. Vai-se desembrulhando lentamente, com paciência e prazer, para saborear o recheio como deve ser. Cada dobra do terreno, cada curva da estrada e cada vereda têm algo de surpreendente à espreita.
É também por isso que Maria José Abreu e a família não querem ir a lado nenhum. Depois das cheias de 2010, ainda Miguel Albuquerque era presidente da câmara do Funchal, podiam ter mudado para outro sítio qualquer da cidade. Mas nem pensar. “Disse-lhes ‘arranjem-me, verifiquem se é seguro e eu vou'”, conta Maria José, que está convencida de que “não há segurança em lugar nenhum”. Teve agora o fogo a ameaçá-la e emociona-se a cada frase, mas não se arrepende das decisões que tomou. Não tem de ser ela a ir embora. O fogo é que não tem nada que cá vir.