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"Por vezes, a vida no paraíso é um inferno"

Na Choupana, a escolha dos moradores foi clara: primeiro a vida, depois a casa. Quando as chamas chegaram, muitos fugiram sem olhar para trás. Regressam agora, sem saber o que vão encontrar.

Parece que aproveitaram a calada da noite para vir. Parece que sabiam quais as casas que tinham ardido e quais as que podiam ter gente. Parece que vieram numa carrinha branca e levaram tudo o que podiam, tudo o que o fogo não consumiu. Parece. Disse alguém. Na encosta da Choupana, no Funchal, devorada por um incêndio há menos de um dia, corre a história de que alguém se aproveitou da desgraça alheia para vir encher os bolsos. Mas ninguém sabe dar pormenores concretos.

Para os supostos ladrões, era um golpe de sorte. Houve quem não arredasse pé de casa até garantir que nem uma telha sairia chamuscada, mas outros não tiveram outro remédio senão fugir e deixar as habitações abandonadas, à sua sorte. Nas mãos de uma entidade a que José Maria Pinto hesita em chamar Deus. “Eu fugi para bem longe”, admite com simplicidade. Ele e vários vizinhos da encosta.

Na tarde de terça-feira, o grande incêndio que já andava nas zonas de São Roque e do Monte chegou à Choupana. Foi daqui, à boleia do vento, do calor, do pasto seco e dos eucaliptos, que se propagou ao centro do Funchal. Apesar de esta quinta-feira a situação ser já muito menos grave do que há dois dias, o manto de fumo, a fuligem e o cheiro a queimado não desapareceram da capital madeirense.

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A paisagem do Funchal esteve assim praticamente todo o dia: muito fumo, fuligem e um cheiro a queimado no ar (Fotografia: D.R.)

A Choupana, aliás, é ainda uma das situações que mais preocupa os bombeiros. Uma caminhada estrada abaixo ajuda a compreender porquê. Ainda são dezenas os locais onde há fumo intenso ou mesmo brasas a ameaçar trazer o fogo de volta. Em várias curvas do percurso, o ar está praticamente irrespirável. Um pouco por toda a parte ouvem-se troncos e pedras a rolar pela encosta.

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De resto, é um dos locais mais silenciosos do Funchal. Não se ouve nada. Os pássaros desapareceram e praticamente não se vê vivalma. São quilómetros de terra queimada, terra de ninguém. À primeira vista, parece que só as lagartixas ficaram cá.

"Parecia um cenário de guerra. Foi bastante marcante."

Fogo ameaçou o Nacional da Madeira

José Maria fugiu, os vizinhos fugiram e os jogadores do Nacional não foram exceção. Terça-feira foi um dia de constantes reviravoltas na evolução das chamas e o clube não quis arriscar. “O vento estava a levar o fogo para longe, depois trouxe-o para cá, depois levou-o para baixo…” A explicação de Saturnino Sousa, diretor de comunicação do Nacional da Madeira, é acompanhada por gestos com as mãos que servem para exemplificar o complexo bailado que as rajadas de vento descreveram na Choupana.

O estádio, os campos de treino e as restantes instalações do clube — situadas bem no topo da encosta — só não arderam por muito pouco. Os jogadores da formação e alguns profissionais de futebol vivem aqui. “Tivemos de evacuar todas as pessoas”, esclarece Saturnino Sousa nos cinco minutos que dispensa para receber o Observador. O fogo já não anda aqui perto, mas há muitas coisas para fazer. “Não temos telecomunicações, não temos água, nem sabemos quando vamos ter”, diz o responsável, que enumera ainda outros problemas: a péssima qualidade do ar que se respira, a cinza que entrou para tudo o que era sítio, a própria ameaça de o incêndio se reacender.

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Os atletas do Nacional foram para casas de companheiros de equipa ou para centros sociais que estão a receber desalojados de toda a cidade. Os treinos passaram para os campos de entidades que se disponibilizaram: o União da Madeira, a Câmara Municipal de São Vicente, o Santacruzense. “Estamos a avaliar a situação para ver se é seguro voltarem”, diz Saturnino Sousa, que realça a máxima importância dada pelo clube à manutenção do complexo desportivo nas melhores condições. “Se perdêssemos a casa, perdíamos tudo o resto. Tentamos manter os dedos, depois os anéis.”

Cara e coroa

Descendo do Estádio da Choupana em direção ao mar, a estrada íngreme e sinuosa está ladeada de zonas queimadas. Veem-se árvores caídas e bilhas de gás negras. A dado ponto, a carcaça metálica de dois automóveis. Logo abaixo está a casa de José Maria Pinto. Na terça-feira, fugiu. Esta quinta, logo pela manhã, voltou para ver o que sobrava da sua vida. “Eu sabia que não ia ter casa. Estava convencido de que hoje ia chegar aqui e não ia ter nada.” Enganou-se. Por um qualquer prodígio, que atribui a essa tal entidade a que não quer chamar Deus, a casa está intacta.

Encontrou tudo tal como deixou. Quando já era impossível continuar a fazer frente às chamas, só teve tempo de soltar os cães e correr dali para fora. Também os animais estavam de perfeita saúde. E José Maria, brincalhão, diz que foi por causa deles que a casa não foi assaltada. “Os meus cães são uns bananas, mas fazem muito barulho. Não deixam ninguém lá entrar”, ri-se, atendendo logo de seguida uma chamada telefónica. Uma vizinha adolescente contextualiza: as mensagens e as chamadas têm chegado sem parar, toda a gente quer saber qual foi a sorte que calhou a estes habitantes da Choupana.

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Mariana Gonçalves, por exemplo, não foi tão afortunada. Um bocado mais abaixo na ladeira encontra-se a Quinta do Pomar, a “casa mais antiga da Choupana”, de acordo com uma idosa local. Seja ou não, é inegavelmente uma das maiores propriedades da encosta. A casa principal, grande e nobre, ardeu completamente. Os jardins ficaram muito danificados. Apenas a capela, que ostenta a data de 1929, saiu incólume na parte superior. Em baixo, na parte agrícola, não sobrou nada.

Até há poucos dias, estes socalcos que descem a encosta tinham um grande pomar de macieiras, limoeiros, goiabeiras e morangueiros. Havia também plantação de abóboras, inhame e outros legumes. Mariana Gonçalves e o marido são os arrendatários do terreno agrícola, onde cultivavam os produtos que dão forma à marca FreshBio, “uma referência da agricultura biológica da Madeira”, segundo Mariana. A casa senhorial não é deles, é de um parente do Visconde Cacongo, que não está por aqui.

Para Mariana, o facto de os socalcos de terra estarem assentes em pilhas de pneus foi determinante para o avanço das chamas. Dezenas deles arderam e ainda provocam dores de cabeça, uma vez que facilmente se reacendem. Outra coisa que a preocupa são os animais. As galinhas poedeiras, as cabras e os porcos saíram sãos e salvos, embora Mariana não perceba como. Agora, desdobra-se em telefonemas para os tentar vender rapidamente.

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Ao ver as chamas a ganhar terreno, Mariana Gonçalves fugiu dali com o marido. Até porque Santo António, onde têm casa, também estava a arder. O incêndio não pôs diretamente em risco a habitação, mas Mariana não conseguiu descansar. O clarão das labaredas entrava-lhe pelos olhos, o som de bilhas de gás a explodir ficou-lhe nos ouvidos. “Parecia um cenário de guerra. Foi bastante marcante.”

Do paraíso ao inferno, sem passar pelo purgatório

Tamanha fortuna não é coisa de somenos. Por isso, José Maria Pinto não se contém. “Eu estou com uma alegria que se manifesta em lágrimas. É uma alegria porque a minha casa se salvou, os meus haveres estão todos lá. Mas não há razões para comemorar, por isso vem com lágrimas.”

Reúnem-se vários vizinhos numa curva mais larga da estrada para fazer contas à vida. Pelo que já viram, não há muitas casas a lamentar. Uma das que sucumbiu foi a de uma mulher, emigrada na Venezuela, de que ninguém tem um contacto. Espera-a uma triste surpresa.

“Isto tem sido uma atrás da outra”, suspiram. Em 2010, foram as enxurradas — sempre referidas como “o 20 de fevereiro” — e logo a seguir um grande incêndio. Em 2012, novo grande incêndio. A Choupana apanhou tudo. Quando a força das águas fez desabar a Madeira no Funchal, “a montanha veio por aí abaixo” e por pouco não matou José Maria e os vizinhos. “Tivemos de sair de casa por entre a lama”. Depois, as chamas andaram ali à volta, mas não tão ameaçadoras como agora. “Desta vez foi muito pior”, refere um dos vizinhos da zona. José Maria encolhe os ombros: “Por vezes, a vida no paraíso é um inferno.”

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