Vincente Minnelli (1903-1986) costumava dizer que quando morresse, a sua lápide funerária devia ter a seguinte inscrição: “Aqui jaz Vincente Minnelli, que sempre trabalhou demais”. E é verdade. O realizador de “Um Americano em Paris”, a quem a Cinemateca dedica uma retrospetiva integral, “As Mil Apoteoses de Minnelli”, que começa hoje, às 21.30, precisamente com este filme, e se prolonga pelo mês de junho, foi sempre um mouro de trabalho. Primeiro, quando jovem, na sua Chicago natal, como decorador de vitrinas de um grande armazém, como fotógrafo, e como figurinista e cenógrafo no teatro. Depois em Nova Iorque, na Broadway, em vários ofícios no Radio City Music Hall, e a seguir dirigindo espetáculos para o lendário Florence Ziegfeld. Uma vez em Hollywood, na década de 40, contratado por Arthur Freed para a MGM, Minnelli chegou a fazer três filmes por ano, e a trabalhar em dois ao mesmo tempo. Mas quem corre por gosto não cansa, e o pai de Liza Minnelli era um dos homens de mais bom gosto de todo o cinema americano.

[Sequência de “Um Americano em Paris”]

Considerado o criador do moderno musical de Hollywood, à compita com Stanley Donen, Vincente Minnelli (nascido Lester Anthony Minnelli) é, no entanto, um cineasta cuja reputação tem tido altos e baixos ao longo das décadas, sobretudo por parte da crítica anglo-saxónica. Nomes como Andrew Sarris ou David Thomson escreveram que ele “acreditava mais na beleza do que na arte”, ou que se preocupava mais “com a decoração” do que com outra coisa. Parecem-me juízos mesquinhos. Minnelli era um esteta e um estilista, muito culto e grande apreciador de arte – nomeadamente, de pintura impressionista e surrealista, venerando Van Gogh e Dalí –, o que está patente por toda a parte nos seus filmes, sejam musicais ou não. Para os menos cinéfilos, os seus sofisticadíssimos, apoteóticos e oníricos musicais tendem a ofuscar os outros filmes que fez, entre os quais se contam dramas psicológicos, melodramas, comédias em vários registos e até um policial, revelando como conseguia trabalhar sem contradição com o moderno e o clássico, o mais etéreo e jubilatório e o mais grave e tangível.

[Sequência de “A Vida Apaixonada de Van Gogh”]

Joe McElhaney, crítico, professor e historiador de cinema americano, notou num artigo sobre o autor de “A Roda da Fortuna”, que ele gostava de palavras como “beleza” e “magia”, que surgem constantemente nas suas entrevistas e na sua autobiografia; e que uma das frases favoritas deste cineasta “pouco dado a articular explicações sobre a sua obra”, era: “O que procuramos no cinema, o que tentamos criar, é um pouco de magia”. E foi o que ele conseguiu nos seus musicais, feitos em estúdio, ao contrário dos de Stanley Donen. Neles, Minnelli usou como nenhum outro, espaço, cenários, movimento, cor (chegou a conceber uma grua móvel para andar com a câmara em qualquer direção, e a criar um tom de amarelo específico que usava sempre, o “Minnelli Yellow”) e os corpos dos atores para criar essa magia, assim como uma qualidade surreal e onírica única (as suas fitas têm muitas vezes uma sequência de sonho), mantendo sempre vasos comunicantes com a pintura. Como no citado “Um Americano em Paris”, onde cada um dos “décors” das sequências de dança corresponde ao universo de um pintor impressionista. E que dizer de “Não Há como a Nossa Casa”, onde a narrativa não é serviçal da música, como era costume no género, mas está “encaixada” na história como o melhor Lego cinematográfico?

[Sequência de “Não Há como a Nossa Casa”]

https://youtu.be/hmx1L8G25q4

Trabalhou para a MGM quase toda a sua vida, foi um dos cineastas com mais sucesso comercial em Hollywood e os seus filmes valeram muitos Óscares a atores, argumentistas, compositores e técnicos, embora Vincente Minnelli tenha ganho apenas por uma vez o de Melhor Realizador, com “Gigi”, em 1958. E por falar em Óscares, a família Minnelli é ainda a única em que pai (Vincente), mãe (Judy Garland) e filha (Liza Minnelli) foram premiados com a estatueta da Academia. De entre os mais de 30 filmes realizados por Minneli que veremos nesta “integral” da Cinemateca, escolhemos 12, uns muito conhecidos e outros mais discretos, incluindo alguns que costumam constar na coluna de “falhanços” do realizador. Se o são, tomara muito boa gente ter falhado como ele. (Paralelamente, e como complemento a este “Minnelli completo”, a Cinemateca apresenta o ciclo “São Todos Musicais”, que começou ontem e termina no dia 31. Toda a informação aqui).

[Sequência de “Gigi”]

“Não Há Como a Nossa Casa” (1944) – A primeira obra-prima incontestável de Vincente Minnelli, baseada no romance autobiográfico de Sally Benson, e um dos filmes mais felizes já feitos. É a história de uma típica família americana na St. Louis do início do século XX, durante a Exposição Universal e antes dos Jogos Olímpicos. Judy Garland canta “The Trolley Song”, entre outras, e a pequena Margaret O’ Brien ganhou um Óscar de Melhor Atriz Infantil. Minnelli e Garland conheceram-se durante a rodagem e casaram-se pouco depois.

“A Hora da Saudade” (1945) – Um soldado de licença (Robert Walker) e uma rapariga (Judy Garland) conhecem-se em Nova Iorque, apaixonam-se e decidem casar-se antes que ele parta para a frente de combate, tentando concentrar num par de dias a felicidade que poderão não vir a ter se ele morrer em combate. Minnelli recebeu o projeto das mãos de Fred Zinnemann e recriou Nova Iorque convincentemente nos estúdios da MGM. É um dos raros filmes de Judy Garland onde ela não canta.

“O Pirata dos Meus Sonhos” (1948) – Outro dos pontos mais altos da carreira de Minnelli, e do musical da MGM. Gene Kelly e Judy Garland interpretam esta fita passada nas Ilhas Virgens coloniais do século XIX. A música é de Cole Porter e a ação anda sempre a transitar entre realidade e sonho, levando o realizador a dizer que “O Pirata dos Meus Sonhos” era “um filme surrealista”. Foi um inesperado fracasso de bilheteira para o estúdio, apesar das presenças de Kelly e Garland e da altíssimo reputação de que Minnelli já gozava.

“O Pai da Noiva” (1950) – Mais uma comédia doméstica, passada no seio de uma idealizada mas completamente verosímil família média americana. Spencer Tracy é o “pai da noiva” do título, que tem que enfrentar todos os problemas, confusões, dores de cabeça e despesas relativas ao casamento da filha que adora (Elizabeth Taylor). Joan Bennett interpreta a mãe e até num filme como este Minnelli consegue meter uma sequência com um sonho. O filme teve tal sucesso que o realizador fez uma continuação no ano seguinte, “O Pai é Avô”.

“Um Americano em Paris” (1951) – Mais uma das obras-primas absolutas do realizador, que leva ao auge o seu estilo, e a estética do musical com a chancela da MGM. Gene Kelly faz um pintor americano que tenta vencer em Paris no pós-II Guerra Mundial, atraindo a atenção de duas mulheres, uma compatriota rica (Nina Foch) e uma francesa (Leslie Caron). A música é de George e Ira Gershwin, a influência da pintura francesa vê-se por toda a parte e “Um Americano em Paris” ganhou seis Óscares. A sequência de dança final dura 20 minutos, sem uma palavra que seja.

“Cativos do Mal” (1952) – Vincente Minnelli em modo sombrio e muito dramático, num filme passado em Hollywood, onde Kirk Douglas interpreta um produtor inescrupuloso e ambicioso que quer voltar á mó de cima e por isso usa todos em seu redor para o conseguir. A figura do produtor é, alegadamente, um compósito de David O. Selznick (que chegou a pedir ao seu advogado para ver o filme e avaliar se havia motivos para processo), Orson Welles e Val Lewton. Também com Lana Turner, Dick Powell, Walter Pidgeon, Barry Sullivan e Gloria Grahame,

“A Roda da Fortuna” (1953) – Outro musical inesquecível, este passado na Broadway e escrito pelo célebre casal Betty Comden/Adolph Green. Fred Astaire personifica um cantor e bailarino de Hollywood que sente a idade puxar-lhe a fama de debaixo dos pés, e ruma a Nova Iorque para entrar num musical com pretensões “artísticas”, onde vai contracenar com uma bailarina clássica (Cyd Charisse). As canções incluem a lendária “That’s Entertainment”, e Astaire e Charisse dançam como deuses. E há ainda o número musical inspirado nos filmes de “gangsters”.

https://youtu.be/RYSg5o-N0aI

“Paixões Sem Freio” (1955) – Cenário: um hospital psiquiátrico de luxo onde um novo diretor tem que cuidar das necessidades de uma variedade de pacientes, bem como da sua mulher, que se sente cada vez mais frustrada e negligenciada, e ainda do pessoal. A compra de lençóis novos vai desencadear uma série de conflitos e problemas. Sim, é um filme de Vincente Minnelli, e dos mais subvalorizados. O elenco é assombroso: Richard Widmark, Lauren Bacall, Gloria Grahame, Charles Boyer, Lilian Gish, Susan Strasberg, Oscar Levant, Paul Stewart.

“A Vida Apaixonada de Van Gogh” (1956) – Kirk Douglas é Van Gogh e Anthony Quinn personifica Paul Gaugin, nesta fita onde Vincente Minnelli concretizou o seu sonho de filmar a biografia de um dos seus pintores favoritos. O cineasta foi rodar a França, à Bélgica e à Holanda, aos locais onde Van Gogh viveu, pintou e morreu, em vez de fazer uma recriação em estúdio, como era seu hábito, levando aqui às últimas consequências estéticas e narrativas o que ele definia como “o uso da cor para salientar especificidades da história, do comportamento e do modo de ser das personagens”.

“Deus Sabe Quanto Amei” (1958) – Uma grande adaptação do desencantado e amargo romance de James Jones sobre um soldado (Frank Sinatra) que volta à sua cidade natal, no interior dos EUA, e percebe que não conseguirá integrar-se e viver uma vida quotidiana. Minnelli deu a Sinatra e a Dean Martin dois dos seus melhores papéis no cinema, e fez uma cuidadosa e subtil codificação cromática do filme, para conseguir uma expressão indireta do caráter e dos estados de espírito das personagens. Também com Shirley MacLaine, Arthur Kennedy e Martha Hyer.

“A Menina dos Telefones” (1960) – Uma esfuziante comédia musical importada da Broadway, e a última da longa e riquíssima colaboração entre Vincente Minnelli e o produtor Arthur Freed, “A Menina dos Telefones” foi também o derradeiro filme da brilhante e borbulhante Judy Holliday, que morreria de cancro cinco anos mais tarde, apenas com 44 anos. Holliday é a “menina dos telefones” do título, uma operadora de um serviço de atendimento de chamadas de Brooklyn que está sempre a tentar ajudar os seus clientes, um dos quais um autor teatral (Dean Martin) pelo qual se apaixona.

“Adeus Ilusões” (1965) – Filmado nas belíssimas paisagens costeiras da região de Big Sur, na Califórnia, “Adeus Ilusões” é, injustamente, um dos filmes mais mal-amados de Vincente Minnelli, e o derradeiro que ele realizou para a MGM. Conta a história de uma artista (Elizabeth Taylor) que detesta convenções sociais e regras e vive com o filho pequeno numa casa de praia isolada, apaixonando-se pelo reitor casado e idealista de um colégio religioso (Richard Burton). Plebiscitado pelo público mas demolido pela crítica, “Adeus Ilusões” precisa de ser reavaliado.