1. Como um curto circuito que tivesse pulverizado o sistema das nossas coordenadas, a paisagem tornou-se irreconhecível. Antes tivesse anoitecido sobre ela. Apesar do escuro e da noite lá íamos dando com o caminho ou com a forma de nos desviarmos dele, quando era o caso. Havia instrumentos de navegação com que contávamos e bússolas fiáveis. Hoje, subitamente, ou demasiado subitamente, é cada vez mais “física” a sensação de perda e mais real a certeza de que é indispensável reconstruir novos, como dizer?, “modelos” onde encaixar esse outro mundo que flagrantemente aí está. E que também flagrantemente exibe preferências e referências com que não lidámos e configura destinos que nos são estranhos. Que códigos partilhar com os eleitores que já elegeram Trump e talvez venham a preferir Le Pen? Os meus não certamente. E apesar de dizerem “gasto” o “modelo” que os suporta, são esses códigos que elejo e insisto em praticar, vendo como impossível reconhecer-me noutros.
Que pátria é afinal a do Podemos espanhol, para que vida nos quer capturar Marine Le Pen, com que valores habitar a “terra” de Benoit Hamon, se um dia ele vier a conquistá-la? Que realidades tão distantes são essas? E que caminhos são aqueles, sempre feitos pelas margens como os deles, ao contrário da estrada aberta às várias vias dos nossos valores e convicções? Será que aquilo que representamos caiu em desuso, já não serve com um casaco apertado e um dia será, com fúria e acinte, varrido do mapa da era nova?
Há cada vez mais a sensação de um “separatismo” hostil, como se transportássemos a “culpa”, como se devêssemos expiar termos optado por seguir o GPS do mundo ocidental. Trump manifestamente desconfia de cada um de nós e aponta-nos o seu dedo acusador; a líder da Frente Nacional quer o fim do nosso mundo, o chefe do Podemos vomita-o com raiva. Tudo no mesmo saco? Sim, de certo modo pois o resultado é o mesmo: diluir- ou deveria dizer acabar? – o que ocidentalmente representamos. Corromper a nossa morada, mesmo que hoje acantonada em perguntas sem respostas. Sim, sabemo-lo bem, as respostas estão, como ocorre nos supermercados, “ em falta “ ou tornaram-se num produto “descontinuado” . Mas não é por isso que desisto. Da Europa, a apesar da anemia, do Ocidente, apesar da fraqueza. Quais respostas? Não sei, sei apenas o que se sabe: de certo, apenas o incerto. Uma incerteza que se tornou numa espécie de novo mandamento dos novos tempos.
Mas sei que passam os dias, passa o tempo (tempo demais?) e as “diferenças” podem, verossimilmente, de resto, parecer-nos irreversíveis. Não se vê como partilhar futuros, nem se vislumbra de que valores poderia ser tecido um chão comum. Nem – ao menos – com que alicerces construir a ponte — mas qual? — para os de repente tão estranhos habitantes do inclassificável mundo que se ergue diante do nosso espanto.
A Europa esta cansada? O “modelo” tem de ser revisto e revigorado? É preciso imaginação e reflexão, energia e ousadia políticas para o achamento de outro caminho, à altura de outros “achamentos” de que a Europa já foi capaz? Gerando a melhor, mais culta, mais rica, mais apetecível e invejada das civilizações, Europa continente magnifico? Sim. Toda essa “revisão” — para dizer o mínimo — é imprescindível e por isso urgente. Convinha porém não esquecer o essencial. A ameaçada Europa somos nós, é lá que moramos e é pertença nossa. Sei que parecerá quase ingénuo ou até já deslocado esta espécie de profissão de fé ou mesmo a sua oportunidade. Seja como for, com maior ou menor fé, com euro ou sem euro, com esta ou outra “união”, com este ou outro “perfil” talvez seja melhor — de uma vez por todas — denegri-la menos e cuidá-la mais. Compreendendo — como dizia alguém mais inteligente que eu – que apesar das suas fraquezas tão nossas conhecidas, dos erros cometidos, das debilidades que sulfuricamente a vão corroendo, a Europa é a solução e não o problema. Troquemos a lamúria pela sua defesa.
2. Há cada vez a percepção de que, na sociedade atual, se vai “implantando” uma linguagem que reflete — e pior, transmite e incessantemente retransmite — o crescimento de uma quase demencial agressividade. Vê-se à vista desarmada, nos écrans, na rua, em comícios, nos liceus, em reuniões comunitárias e claro, na montra da media. Que a cultiva, promove e amplia. Protagonistas, produtores, agentes, obreiros da nova era surgem-nos cada vez mais contaminados pelo ressentimento, deixando gangrenar divisões e praticando a acusação torpe e passando o seu imediato certificado de culpa com a espantosa desenvoltura de quem respira. E praticando ainda, com cada vez maior frequência, o insulto ofensivo, a humilhação, o desprezo, a condenação, o ódio. Brandindo as palavras como armas remetidas pela mais letal das rejeições.
É a guerra. E por isso, é assustador.
3. A novela da Caixa Geral de Depósitos está perigosa. Nada que os capítulos anteriores não antecipassem (ou é surpresa para alguém o total envolvimento do Presidente da Republica e sobretudo o modo como se foi nela enredando?) mas…a quem se poderá pedir que ela saia de vez dos nossos écrans e da praça pública? Recentemente exibiu-se entre nós uma telenovela também nacional que — caso nunca visto em parte alguma — contou com mais de 500 episódios. Pois bem, a da Caixa está candidata a competir seriamente com este excesso. Como me acho (e julgo que de resto o país inteiro) devidamente informada sobre a mentira do ministro, as inabilidades de Domingues, as manhas da geringonça e as exaustivas e incautas intromissões, ditos por não ditos, avanços, recuos, avisos, afirmações e contra afirmações do sempre histriónico Presidente da Republica – dispensar-se-iam mais episódios. Se “alguém” com mais juízo e maior respeito pelo cidadão eleitor compreendesse que o país também dispensaria, agradecia-“se”.
4. Bem pode Carlos César proferir frases de “efeito” e falar de outras coisas que a tensão política entre o PR e o PM, aterrou. Ignoro se é uma escala ou um destino e até aterrou politicamente antes do (meu) horário. É caso para tomar boa nota pois pela primeira vez. todos os erros foram cometidos. E pensar que a procissão ainda mal saíu da igreja.