Leio a imprensa internacional. O ódio a Cristiano Ronaldo é um dos raros consensos mundiais. Nem Trump, por muito que insulte mexicanos, mulheres e democratas, consegue tanto. Exagero? Quem me dera. Um exemplo basta. Esta crónica de John Carlin: “nunca na história do futebol houve alguém que combinasse tanta grandeza como jogador com tanta tolice como pessoa. Ronaldo é a melhor prova de que alguém pode ser rico, bonito e famoso, e até que alguém pode chegar à glória de ser considerado o segundo melhor jogador do mundo e, ao mesmo tempo, ser um sujeito tão pobre de espírito. Por mais que se rodeie de Ferraris, Rolls-Royces e top models, não está em paz consigo mesmo e, no fundo, não é feliz”. Ah, como eu gosto dos fiscais da felicidade alheia! Note-se o subtil sarcasmo – a glória de ser considerado o segundo melhor jogador do mundo – e o diagnóstico definitivo: Ronaldo não está em paz consigo mesmo, não é feliz e, por muito que tente convencer Carlin e o resto do mundo, não conseguirá. É um crápula, uma besta, um infeliz. Porquê? Por causa de umas declarações infelizes e tão criticáveis que eu mesmo as critiquei aqui.
A crónica de Carlin ainda piora. A culpa não é do pobre rapaz, escreve o opinador: “Seu pai foi alcoólatra, mal esteve presente em sua vida e morreu quando Ronaldo tinha 20 anos. A figura paterna foi usurpada por um bando de abutres cujo único interesse era tirar a maior fatia económica possível do seu sucesso. Não teve pessoas à sua volta que tivessem a bondade de tentar colocar seus pés na terra; teve falsos aduladores”. Isto é verdadeiramente inacreditável. Parece que Carlin está a falar de um jogador que só é excelente na sua própria cabeça e na dos seus “falsos aduladores”. Parece que está a falar de um Balotelli ou de um desses jogadores cujo talento foi desperdiçado à conta de loucuras e de excessos. Parece que está a falar de um jogador que apenas por misericórdia teve a “glória de ser considerado o segundo melhor jogador do mundo”. Mas Carlin está a falar de um jogador que há seis épocas consecutivas marca mais de 50 golos, que conquistou três bolas de ouro, que é recordista de internacionalizações e de golos pelo seu país, que apesar de todos os insultos de todos os adversários, dos gritos “Messi! Messi! Messi!” em campos e aeroportos de todo o mundo nunca facilitou, nunca se deixou ir abaixo e, em campo, é geralmente correcto com os árbitros e com os adversários (nunca mordeu nenhum, por exemplo). Isto sendo filho de um pai alcoólico e estando rodeado de “falsos aduladores” que nunca tiveram a “bondade de tentar colocar seus pés na terra”. Imagine-se o que Ronaldo teria atingido se estivesse rodeado de pessoas bondosas e sensatas como Carlin!
Ronaldo é vaidoso, por vezes em campo é menos solidário do que devia e, na semana passada, fez declarações pouco simpáticas sobre a selecção da Islândia, mas nada disto são terríveis falhas de carácter nem revelam uma acentuada pobreza de espírito. Quanto muito, é mau perder. Confesso que a mim também me irrita o discurso de treinadores e colegas de equipa que, em todas as conferências de imprensa, se sentem na obrigação de dizer que Ronaldo é “o melhor jogador do mundo” e dou um desconto aos delírios de Jorge Mendes, o apóstolo Paulo deste cristianismo. Mas será que Ronaldo é um mau colega? Um jogador maldoso? Já que o pobre Carlin falou disso, será Ronaldo um filho desprezível? Tudo leva a crer que não, mas os odiadores de Ronaldo nunca deixarão que os factos atenuem o seu ódio. Porquê? Certa vez, Cristiano ensaiou uma explicação. Segundo ele, criticam-no por ser rico, bonito e bom jogador. Claro que esta afirmação, bronzeada e de abdominais perfeitos, só reforçou o ódio e a antipatia gerais.
Tudo se reduz a isto: a maioria das pessoas simplesmente não vai à bola com Ronaldo. A sua figura e a sua atitude tocam num nervo colectivo, exasperam, irritam. Ele é a personificação da húbris e os seus críticos acham que os deuses não o fazem pagar por essa arrogância. Então racionalizam esse desagrado epidérmico, entram no domínio da psicanálise, interpretam enviesadamente cada gesto, festejam cada falhanço, apoucam-lhe os méritos e as conquistas, tudo para que o sentimento que nutrem em relação a ele pareça fruto da razão e não aquilo que é: um ódio de estimação, infantil, visceral, inexplicável. Esses ódios mesquinhos e sem motivo são muito humanos. Eu, por exemplo, nutro por Thomas Muller uma antipatia fundamental, incontrolável. A qualidade do jogador, as estatísticas, os golos, a percentagem de passes correctos, tudo isso para mim é irrelevante. Só a cara me interessa. E aquela cara é-me tão antipática que, quando a vejo na televisão, apoderam-se de mim instintos homicidas que trato logo de controlar com recurso a Bach e um whisky. Seria mais simples se os odiadores de Ronaldo reconhecessem isto, que o deles é um ódio de estimação insensível a qualquer prova que o possa beneficiar. Há dias, escrevi que é impossível amar uma máquina como Ronaldo (os seus defensores não o amam, são reactivos – esta crónica é prova disso). Só não sabia que era possível odiá-la com tamanho fervor.
Já agora
Um amigo chamou-me a atenção para o golo de Witsel contra a Irlanda, o segundo da Bélgica. Fui ver e pareceu-me um golo normal, uma boa movimentação, nada mais. O meu amigo esclareceu-me: “só viste os últimos quatro ou cinco passes e a jogada teve 28”. Ao contrário do que acontece com os edifícios, nas jogadas de golo ninguém liga à primeira pedra. Só o remate final e, por vezes, a assistência é que contam. O resto – mesmo numa sequência ininterrupta de 28 passes – é trabalho invisível, a teia pacientemente tecida e raramente celebrada. Mas quem sabe se o toque decisivo não foi aquele a meio-campo e de que ninguém se irá lembrar?
Payet está endiabrado. Ontem, num remate de primeira, em vólei, atirou uma bola à barra. No final do campeonato, estará na minha lista dos melhores golos. Perante o gesto perfeito de Payet, aquele foi um golo em que a bola por acaso não entrou.
A “minha” Albânia lá ganhou um jogo. Sadiku foi o autor do golo que derrotou a Roménia. Os festejos paroxísticos dos jogadores albaneses lembraram-me que marcar um golo é uma das alegrias mais puras da vida.