Creio que é no Pátio das cantigas que o óptimo António Silva, muito ufano por aparecer no jornal uma notícia, já não me lembro sobre o quê, mas dizendo-lhe respeito, é interrogado por alguém (Ribeirinho?) se a coisa vem na primeira página. “Upa, upa!”, responde, “na sétima!”.
Toda a gente, para o bem e para o mal, tem momentos upa-upa, e é por os termos – isso vale para a má-fé e para tudo o resto, é claro – que os compreendemos nos outros. O upa-upismo, se me é permitida a expressão, pode talvez definir-se como a prática que consiste em inverter ad hoc uma hierarquia estabelecida (de valores, por exemplo, ou de prioridades) com o objectivo de estimular o amor-próprio, ou, mais prosaicamente, de obter algum benefício, provisório ou duradouro. O upa-upismo dá, portanto, imenso jeito. Tanto na sua versão ingénua, a de António Silva, como em versões menos ingénuas e mais frequentes do que normalmente se pensa. A imaginação proporciona consolo em muitos casos. Por vezes, consolos muito reais.
Não sou, obviamente, especialista em matéria de economia ou de finanças, e a prova disso, se prova fosse precisa, é que, até há alguns anos atrás, sempre associei “AAA” a uma categoria de andouillettes, um enchido francês de que sou fã e cuja classificação de qualidade (máximo: AAAAA) é estabelecida pela nobremente intitulada Association Amicale des Amateurs d’Andouillette Authentique. Mas as desgraças palpáveis do país, e as parciais desgraças que as desgraças do país me trouxeram a mim, fizeram-me procurar saber mais alguma coisa sobre o assunto do que aquilo que se encontrava ao meu alcance na óptima e saudosa fase pré-dilúvio.
É claro que não avancei muito. O pensamento económico não é – nunca foi e nunca será – a melhor forma do meu espírito exprimir com felicidade o universo. Como dizia um filósofo ilustre, não passo das percepções confusas, das “pequenas percepções”, nesta matéria. Na onda, vejo a onda; não vejo, ou só tenho delas uma percepção tão vaga que me é inconsciente, todas as pequenas gotinhas de água que constituem a onda. Mas o pouco que avancei, com esforço, na matéria, apesar de não me ter concedido um conhecimento positivo do objecto, longe disso, permitiu-me, pelo menos, alguma reserva substantiva em relação a certas doutrinas correntes que, à mais superficial das investigações, vêm vestidas com as roupas todas do ridículo.
Um pequeno parêntesis sobre o ridículo. Há certamente muitos domínios em que o ridículo é perfeitamente honroso. Na paixão, por exemplo. É um género, se bem me lembro, em que o medo do ridículo é infinitamente mais danoso do que o desprevenimento. Há mesmo, sobretudo para almas que não foram contempladas com o benefício de outras crenças, algo de próximo do sagrado na coisa. Não desenvolvo, porque não faz sentido aqui. Mas, quando lidamos com convicções que têm a ver com o todo da sociedade, o ridículo é, definitivamente, algo a evitar. Não por causa do ridículo em si (em si, qual a importância que x ou y digam coisas ridículas sobre a sociedade?), mas por causa dos seus efeitos. Os efeitos do ridículo em matéria política tendem quase sempre velozmente para o grotesco, e o grotesco inclina-se facilmente para o horror. Por isso, é um erro desvalorizar os efeitos perniciosos do ridículo em política. Hitler foi, indubitavelmente, o mais ridículo dos seres humanos que jamais existiu. Dou este exemplo, sabendo perfeitamente que um quase perfeito exemplo do mal em estado puro, na medida em que tal é concebível, deve ser utilizado com precaução que nunca é pouca. Para arranjar exemplos que ponham menos problemas: pense-se na Coreia do Norte ou na Venezuela.
Fechado o parêntesis. A ouvir muito do que se diz por aí sobre métodos para pormos fim à crise, uma pessoa lembra-se de um antepassado de António Silva, o Barão de Münchhausen, que pretendia voar pelo simples método de puxar energicamente pelos atacadores dos sapatos. Eu sei que há escolas económicas sérias que defendem algo próximo disto. Mas não é isto, e é isto que se ouve por aí, no habitual baixo latim de certas seitas. Se há uma unidade visível nas políticas que António Costa, com o seu particular estilo de bonomia agressiva (falsa bonomia, real agressividade), anuncia e pratica, ela encontra-se no upa-upismo. As mais palpáveis prioridades encontram-se subvertidas. A sétima página do jornal é, por decreto, muito mais importante do que a primeira. O upa-upismo toma conta de tudo, em função do interesse político. No dia em que a agência canadiana DRBS disser que somos lixo, não faltará quem diga que isso só prova a justeza das políticas seguidas.
Os upa-upistas políticos não têm graça nenhuma. E a pouca graça tem pouco a ver com a ideologia. Pessoalmente, se for inspeccionar o fundo da minha alma e me imaginar com uma pistola apontada à cabeça, obrigado a dizer o que me vai ideologicamente lá dentro, diria que sou social-democrata. O que é compreensível para um grande número de pessoas da minha idade, e isso obviamente tem pouco, ou nada, a ver com o PSD. Mas, se tivesse tempo, com a tal pistola apontada à cabeça, ainda acrescentava: “Mas não sou maluco”. Porque é preciso andar perto da maluquice para pretender que uma concepção geral da sociedade vale como um bloco imóvel e perene aplicável em todas as circunstâncias. Não vale, é claro. As circunstâncias particulares exigem decisões particulares que lhes convenham. Decisões que correspondam efectivamente às prioridades do momento e não invertam ad hoc a sua ordem. E pessoas singulares, também. O sóbrio Passos Coelho em vez do upa-upista António Costa, por exemplo.
Isto não tem nada a ver com o PS ou o PSD, ou com as pessoas de boa-vontade que se encontram num sítio ou noutro, no Governo ou na oposição. Tem a ver com o risco do grotesco e com as consequências costumeiras do grotesco em política, consequências que tendem declaradamente para o horror. Cuidado com o upa-upismo!