“Não sabe cantar, não sabe andar, não sabe falar. É sensacional!” Estas palavras terão sido proferidas por Louis B. Mayer, patrão dos estúdios da MGM quando viu Ava Lavinia Gardner pela primeira vez. Estávamos em 1941, ano louco em Hollywood, e o Método ainda não transformara as estrelas de cinema em imitações de intelectuais franceses. Aliás, naquele tempo ainda havia estrelas de cinema. E intelectuais franceses.
A jovem vinda da Carolina do Norte com um sotaque tão carregado que ninguém a compreendia podia não saber muitas coisas, mas sabia uma muito importante, um segredo inalcançável para as restantes mortais: como ser Ava Gardner. Na verdade, talvez nem ela soubesse o segredo. “Seja lá o que for, ela tem-no”, disse Humphrey Bogart que sabia umas coisas sobre carisma.

No primeiro dia na Meca do cinema, como contou muitos anos depois ao jornalista Peter Evans, conheceu Mickey Rooney, na altura o actor mais rentável da MGM e que, apesar do seu simpático ar de duende, era um autêntico sátiro. Apaixonaram-se e casaram-se. Algo relutantemente, a MGM aceitou a união, desde que a imagem jovial e familiar de Rooney não saísse beliscada. Para o estúdio, Ava era apenas uma das muitas beldades contratadas e ocupadas com papéis menores em filmes menores. A vaca leiteira era Rooney. Apesar da diferença de alturas, que a imprensa da época não se cansava de destacar, os dois entendiam-se bem. O problema é que Rooney entendia-se bem com muitas mulheres. Um ano depois estavam divorciados, uma separação por causa das constantes infidelidades do baixinho mas que Ava, oficialmente, para não prejudicar a carreira do ex-marido, atribuiu a “incompatibilidades”.
Ava reconheceu que isso poderia ter acabado com a carreira dela, mas aconteceu o contrário. O estúdio renovou-lhe o contrato e melhorou-lhe o salário (até aí recebia 50 dólares por semana; para se ter uma ideia, Rooney ganhava 1250 dólares por semana). Porém, Ava ainda era uma desconhecida para o grande público.
Irresistível
A explosão deu-se em 1946, há setenta anos, com a estreia a 28 de Agosto de “Assassinos”, um film noir de Robert Siodmak, inspirado no famoso conto de Ernest Hemingway, que também marcou a estreia cinematográfica de Burt Lancaster. Mas foi Ava, no papel de femme fatale, quem mais deu nas vistas. Tinha nascido uma estrela.
[o trailer para “The Killers”]
Na altura da estreia, o segundo casamento de Ava Gardner, com o clarinetista Artie Shaw, estava quase a chegar ao fim. O músico já tinha sido casado com outra estrela de Hollywood, Lana Turner, com a qual também Mickey Rooney tinha tido um caso antes de conhecer Ava, e era aquilo a que em inglês de chama um “mindfucker.” Criticava-a constantemente em público, obrigou-a a consultar um psiquiatra e não parava enquanto ela não se sentisse completamente em baixo, sem confiança ou auto-estima. O único aspecto positivo da pressão do marido foi que Ava aproveitou para voltar a estudar, inscreveu-se na Universidade da Califórnia e tirou alguns cursos por correspondência. Ah, e começou a beber. Muito. Para Ava, doses industriais de álcool tinham outro nome: pequeno-almoço.
Portanto, aos 23 anos, Ava Gardner era uma estrela em ascensão e contava com dois casamentos e dois divórcios no currículo. E as coisas ainda iam melhorar. Em 1951, Francis Albert Sinatra deixou a mulher, Nancy, e atirou-se para os braços de Ava. A mulher fatal era agora, oficialmente, uma destruidora de lares, embora o casamento de Sinatra não precisasse de muito para ruir. A curiosidade é que, naquele tempo, a carreira de Sinatra andava pelas ruas da amargura.
A vedeta – e quem punha o dinheiro em casa – era Ava. Conta-se a história – recriada em “O Padrinho” – de que teria sido a Máfia a dar uma ajudinha ao relançamento da carreira de Sinatra. Afinal, foi Ava Gardner quem deu uma palavrinha a Harry Cohn, o manda-chuva da Columbia Pictures, para que Sinatra entrasse em “Até à Eternidade” (cujo protagonista era Burt Lancaster).
O cantor acabou por ganhar o Óscar de Melhor Actor Secundário mas nunca perdeu a sensação de fazer, naquele casamento, o papel de atrelado. Desconfiava da mulher, acompanhava-a nas filmagens (por exemplo, Ava pagou-lhe os bilhetes para África para a rodagem de “Mogambo” – filme que valeu à actriz a única nomeação para um Óscar), recorria à chantagem emocional e por várias vezes ameaçou suicidar-se. Uma vez, fechado no quarto, chegou mesmo a dar um tiro na almofada para que Ava pensasse que tinha disparado sobre si mesmo. Enfim, italianices.
[“Mogambo”, de 1953]
Entretanto, Ava estava numa de espanholices. Em Espanha, para onde se mudou depois de filmar “A Condessa Descalça” (1954), envolveu-se com os toureiros Mario Cabré e Luis Miguel Dominguín (o famoso toureiro, pai do cantor Miguel Bosé, e que se estreou nas lides aos 12 anos, no Campo Pequeno). Dois cavalheiros, diga-se: Cabré passou o resto da vida a falar da sua conquista (uma relação que terá durado exactamente uma noite) e Dominguín guiava-se pelo lema feminista segundo o qual “não vale a pena seduzir uma beldade se depois não se pode contar aos amigos.”
Dois anos antes, Ava tinha desempenhado o papel de Cynthia Green em “As Neves do Kilimanjaro”, outra adaptação de um conto de Hemingay (o homem dos “bells, balls and bulls”, segundo Nabokov), a segunda das três em que participou (…”E o Sol Também Brilha”, de 1957, foi a terceira e última). Estava tudo conjugado para que a actriz conhecesse o escritor. E assim foi. Ficaram grandes amigos. Conta-se que, certa vez, Ava terá tomado banho completamente nua na piscina de Hemingway, em Havana. Posteriormente, o escritor terá dado ordens para que a piscina nunca mais fosse esvaziada (entretanto, foi).
Fora de tempo
Nos anos 60, Ava Gardner ainda participou em grandes produções, como “55 Dias em Pequim”, com Charlton Heston e David Niven, mas o seu último grande papel como estrela de primeira grandeza foi em “A Noite de Iguana”, em 1964, realizado por John Huston e baseado na peça de Tennessee Williams. O elenco contava com Deborah Kerr e Richard Burton, então casado com Elizabeth Taylor (Ava dizia que Liz Taylor era bonita, mas que ela era bela).
[trailer para “A Noite da Iguana”]
Ava Gardner tinha 41 anos. Em Hollywood, era a idade da reforma para as mulheres. Até para o papel de Mrs. Robinson, em “A Primeira Noite”, três anos depois, Ava foi considerada velha. Ainda tentou ficar com o papel. Marcou uma reunião com o realizador, Mike Nichols, e a primeira coisa que disse, como uma verdadeira diva, foi: “em primeiro lugar, não me dispo para ninguém!” O realizador, que nem sequer tinha pensado nela para o papel, escolheu Anne Bancroft, na altura com 36 anos, ou seja, quase na terceira idade hollywoodiana.
Ava Gardner passou os últimos anos de vida em Inglaterra e ainda participou em alguns filmes importantes na década de 70. Apesar do fracasso do casamento, manteve a amizade com Sinatra e este até lhe terá prestado ajuda financeira numa altura em que a actriz aceitou escrever a autobiografia para não ter de vender as jóias. Anos antes, com receio de acabar com a doença que vitimara a mãe, um cancro do colo do útero, tinha feito uma histerectomia. Acabou por morrer em 1990, aos 67 anos, com problemas pulmonares, a mesma causa de morte do pai.
Bruno Vieira Amaral é crítico literário, tradutor e autor do romance “As Primeiras Coisas”, vencedor do prémio José Saramago em 2015.