Não acredita que hostilizar o Reino Unido resulte em algo de bom, defende que os restantes países da União Europeia não podem apenas exigir coisas à Alemanha e é chegada a altura de dar algo em troca, acredita que as forças eurocéticas que jogam com o medo das populações têm crescido gradualmente e que está na altura de a Europa tomar uma atitude. Em entrevista conjunta ao Observador e à Rádio Renascença, o economista francês da Universidade de Berkeley, e antigo conselheiro económico de François Hollande, deixa o aviso aos líderes europeus: “Deviam estar extremamente preocupados”.
Foi um dos mais requisitados economistas da edição deste ano do Fórum do Banco Central Europeu em Sintra, onde apresentou um trabalho em conjunto com Helene Rey da London Business School onde se perspetiva a continuação durante um período prolongado de tempo de taxas de juro baixas. Natural de Toulouse, o economista francês defende a Europa tem de fazer mais para responder às preocupações das pessoas que mais têm perdido com a globalização e com a crise financeira. Caso não o faça, arrisca-se a deixar crescer um movimento eurocético que pode colocar em causa o futuro do projeto europeu.
Sem ativos seguros, como pode ser dirigida a politica monetária?
Nada é completamente seguro e ainda temos alguns ativos seguros, mesmo na União Europeia, como é o caso das obrigações dos principais países, muito sólidos e com taxas de juro extremamente baixas. O que dizemos na nossa pesquisa é que existem ativos seguros, mas não em quantidade suficiente. Aqui, a politica monetária desempenha um papel muito relevante. Há diferentes formas de quantitative easing, algumas delas são ótimas para aumentar a quantidade destes ativos, como quando o BCE compra ativos do setor privado que são quase por definição mais arriscados. Do lado orçamental, pode-se criar uma espécie de obrigações europeias ou juntar vários tipos de dívida soberana, por exemplo.
Mas a Alemanha sempre recusou esse tipo de partilha de responsabilidades…
E com boas razões. O risco moral é uma preocupação legítima e o governo alemão tem o dever para com os seus cidadãos de preservar o valor dos seus recursos. Qual é a sua preocupação? Alguns países, como a Alemanha mas não só, estão preocupados que isso leve a uma espécie de união de transferências onde passariam a ser os responsáveis e ficariam com a responsabilidade de pagar a conta no fim da festa e é por isso não querem que isto aconteça. Existem formas de separar as duas. A questão é se estariam realmente separadas.
Os alemães não se opuseram a alguns elementosda política do BCE, por exemplo, como a implementação do quantitative easing. Acho que isso mostra que estão dispostos a explorar alguma margem que ainda existe, mas não acredito que se possa fazer tudo.
Como se melhora a qualidade dos ativos nas economias mais deprimidas?
O valor também caiu porque foram feitas avaliações excessivamente otimistas do risco de alguns ativos no setor privado antes da crise, e da capacidade orçamental de alguns países, que não vou nomear, na União Europeia. Parte da resposta é cíclica, ou seja, assim que a economia começar a crescer, alguns dos receios que os agentes possam ter em relação a investir e a gastar mais no futuro devem desaparecer, as empresas devem começar a investir mais, as famílias a decidir que podem poupar um pouco menos. Claro que o crescimento é parte da conversa, mas, enquanto as taxas de juro estiverem muito perto do zero ou abaixo de zero, continuaremos encalhados neste equilíbrio longe do ideal em que o desemprego é alto, o crescimento é demasiado baixo e onde não parece que estejamos a recuperar. Por isso, medidas de política monetária não convencionais como o quantitative easing são uma grande parte da resposta.
Há quem diga que é sempre a política monetária a resolver e que isso tem de acabar. O que pode ser feito?
Claro que não pode ser a única resposta, também tem de se reduzir o peso excessivo da dívida que está a ensombrar o futuro destes países. Uma das coisas que defendemos na nossa pesquisa é que é preciso um mecanismo de reestruturação da dívida pública na zona euro que nos permita, caso a situação assim o exija, – algo que em alguns países irá acontecer mais cedo que tarde – reestruturar estas dívidas, remover este peso excessivo e permitir que [estas economias] possam investir no seu futuro outra vez.

Sintra 2016
Já defendeu essa reestruturação. Quando é que a dívida passa a ser insustentável?
Não existe necessariamente um número que, uma vez ultrapassado, se mostre que se atingiu o limite. Depende muito de país para país, mas acho que quando se atinge uma situação em que amortizar dívida implica fazer pagamentos que, em percentagem do PIB, são muito elevados durante um período de tempo muito prolongado, quando a perspetiva é de apertar o cinto sem fim à vista, então torna-se politicamente inviável.
A Itália é um exemplo de um país com uma dívida muito elevada, crescimento muito baixo, mas que ainda assim tem sido capaz de viver com o peso da sua dívida todos os anos. Durante quanto tempo conseguirão fazê-lo? É uma questão muito, muito assustadora, se pensarmos nisso.
A Itália não é um caso especial devido ao peso que as famílias têm na divida pública?
A Itália é um caso um bocado especial, mas não é o único país com essas características. Veja o caso do Japão que tem uma dívida muito elevada e muita dela é detida internamente. As questões mais importantes são porque é assim e se se pode mudar isso? Acho que ninguém tem resposta. Se, subitamente, as famílias italianas, com os seus investimentos em dívida pública, duvidarem da capacidade de o Governo italiano não lhes devolver o dinheiro, não vejo porque não responderiam tentando encontrar outro sítio para aplicar as suas poupanças. Se isso acontecesse, o valor da dívida pública italiana seria muito afetado. E mesmo em Itália, a fração de dívida pública detida por investidores externos tem vindo a aumentar.
Falava de quantitative easing. Algumas economias dizem que estão sobreaquecidas. Acha o BCE pode ir mais longe na comprar de dívida?
A questão é qual é o objetivo que querem atingir. Devido ao mandado estrito que o BCE tem, o quantitative easing for justificado como uma forma de implementar a politica monetária para conseguir o seu objetivo de ter uma inflação perto, mas inferior a 2%. Desse ponto de vista, a compra de ativos não teve um bom resultado. A inflação continua significativamente abaixo de 2% e não mostra sinais de aumento. Podemos dizer que não está a funcionar.
Mas acho que todos entendemos que o quantitative easing tinha outros objetivos para além de restaurar o mecanismo de transmissão monetária. Parte do objetivo era tentar reduzir o nível de fragmentação nos mercados financeiros europeus, introduzir um certo grau de estabilidade, e colocar o poder do banco central para servir de mecanismo de segurança para ativos públicos ou privados, e aí acho que desempenhou o seu papel. Reduziu de forma significativa a fragmentação, estabilizou as taxas de juro a níveis extremamente baixos, algo que está a ajudar os governos a um nível tremendo.
Mas podem fazer mais?
Penso que não há muito mais, em termos de reduzir as taxas de juro, que possam fazer. Vejamos os níveis historicamente baixos das taxas de juro. Pode haver alguns spreads, mas não penso que exista muito mais para fazer aí. Do lado da inflação, enquanto a economia continuar deprimida, os bancos estão completamente satisfeitos em deixar os seus ativos depositados no BCE, mesmo com taxas de juro negativas, em vez de os emprestar. Já a transmissão para os preços e inflação acho que não está a acontecer. Veja-se o caso do Japão, onde o programa de quantitatve easing era muito maior e não conseguiram aumentar a inflação para o nível que esperavam atingir. Na parte de estabilizar o sistema financeiro está a funcionar e para isso não precisamos de fazer muito mais, por isso acho que não existe um bom argumento para aumentar o programa de quantiative easing ou tomar mais medidas não convencionais.
Como se resolve o problema do baixo crescimento na Europa?
O que Mario Draghi dizia esta manhã é que os países que têm alguma folga orçamental na conjuntura atual um papel especial a desempenhar. São eles que podem aumentar a despesa pública ou sem sofrerem efeitos adversos, criando estímulos económicos além-fronteiras e isso teria um impacto positivo no mundo. A questão, talvez há séculos, é como convencer países com excedentes a gastar mais. Tem de ser com algo do seu próprio interesse, o argumento não pode ser que será bom para o resto do mundo. Parte do debate pode ser a saúde da zona euro como um todo. No contexto do Brexit, estou esperançoso que possa haver uma reavaliação das políticas nesse domínio. Quando os responsáveis políticos se reunirem podem decidir que é importante gerar o impulso que está a faltar há algum tempo e que, se continua a faltar, fará crescer o perigo de outros países decidirem que o seu futuro está noutro local.

Com o Reino Unido fora, não é reforçada a visão que a Alemanha tem da Europa?
Nos últimos 15 ou 20 anos tivemos um processo de integração e globalização que, como qualquer processo desse tipo, teve vencedores e derrotados. Durante muito tempo os perdedores estiveram silenciados, foram ignorados ou não foram ouvidos. Acontece a crise financeira e depois a crise da zona euro gerando ainda mais perdedores. O que vemos agora é a terceira fase deste processo, onde estamos muito perto de ter crises políticas em vários países, onde vemos estas forças a aumentar. Não é um processo muito volátil. É antes um aumento gradual. A certa altura teremos de decidir se vamos deixar que este processo corra ou se vamos fazer alguma coisa, avançar com o projeto europeu. Não acredito que qualquer um dos países core da União Europeia queira estar na posição de arcar com as consequências históricas do colapso do projeto europeu.
Estou algo confiante que, em vez de politicas de austeridade, vamos ter outras politicas que possam dar um novo impulso e que possam ainda ser um bom investimento para o nosso próprio futuro, para podermos encontrar o nosso caminho.
Como por exemplo?
Deixe-me dar exemplos específicos. Pense nas crises importantes que a União Europeia está a sofrer para além da crise económica. E estou a pensar especificamente na situação dos refugiados. É obvio que, além do drama humano e da terrível tragédia que representa, é também uma forma de mostrarmos solidariedade para com países como a Alemanha. Estamos sempre a pensar que queremos que eles [Alemanha] façam coisas por nós, mas nós também podemos fazer algo por eles, que estão a aguentar o fardo mais pesado no que diz respeito a receber e instalar refugiados. Temos que pensar nisto como uma relação de longo prazo onde há dar e receber. Esta forma de pensar no futuro da União Europeia é mais frutuosa nos limitarmos a resolver os bloqueios que vão surgindo.
Ficou surpreendido pelo resultado do referendo do Brexit?
Não posso dizer que fiquei. Vi as sondagens e as previsões e desse ponto de vista sim, foi uma surpresa, mas acho que se trata de uma maré crescente que temos observado noutros países da União Europeia. Não podemos dizer que sejam novas, mas estão a ganhar mais terreno, e não só na Europa, já agora, também na União Europeia. Temos a responsabilidade coletiva de responder às preocupações que estão a surgir ou entendê-las, ou arranjar forma de responder a estas questões. Entender de onde estão a surgir estas forças e como pode a situação ser resolvida. Se pensarmos no que está por detrás da decisão do Brexit, a imigração foi certamente uma das razões fundamentais para muitas pessoas votarem na saída.
Vê risco de isto acontecer no futuro próximo na Europa? E que postura acha que os lideres devem ter para evitar aumentar este risco?
Há quem defenda que devemos tornar difícil para o Reino Unido, que isso teria uma característica dissuasora para outros países tentados a seguir o mesmo caminho. Até pode ser que sim, mas seria ter as vistas curtas. Afinal de contas, o Reino Unido ainda está já logo do outro lado do canal. Deve continuar como um parceiro tanto quanto conseguirmos.
Além disso, algumas das dinâmicas do voto no Reino Unido, na minha opinião e eu posso estar errado, não foram motivadas por preocupações económicas, mas por preocupações culturais e de identidade que as pessoas sentiam. Não acredito que se complicássemos o processo ou colocássemos obstáculos ao Reino Unido isso teria impacto nas mesmas forças em jogo noutros países. Devem as autoridades europeias estar preocupadas? Claro, deveriam estar extremamente preocupadas e completamente empenhadas em garantir que o projeto europeu volta a ser uma fonte de esperança e não algo que as pessoas veem sobretudo como um constrangimento, algo que tornou a sua vida num inferno, ou que beneficiou apenas uma elite que pode desfrutar de viagens na easyjet ao fim de semana.
Quanto disto são problemas cíclicos e quanto são questões que já existiam antes?
Acho que é uma combinação de ambos. Não diria que as autoridades não fizeram nada nos últimos dois anos, o BCE por exemplo esteve muito ativo a tentar apoiar a recuperação económica e estabilizar a economia tanto quanto pode. E tivemos coisas positivas. Não estamos em modo de expansão orçamental, mas a maior parte da austeridade já passou.
Mas, e do lado negativo, a crise dos refugiados foi claramente exagerada em vários países e tem sido usada para agravar o medo de muitas pessoas, e a União Europeia tem de responder a isso. Não estiveram parados, mas não fizeram o suficiente. O debate tem de ser em torno do que a Europa tem de ser realmente e como é governada. A instituição europeia parece muito remota dos seus próprios cidadãos. A forma como conduzimos as eleições europeias é, e falo pelo meu país França, uma espécie de concurso de popularidade para as várias formações politicas, não se envolve com um projeto europeu e não deveria ser assim. Demasiado depende disto. Temos de encontrar formas de voltar a envolver as pessoas com os ideais europeus e com as aspirações europeias e perceber que oferecem muito mais para a nossa história coletiva e o nosso futuro coletivo que a dimensão económica, apesar de termos de lidar com isso também.